31 dezembro 2009

Janeiro por inteiro

Marina Silva

EM BREVE entraremos em janeiro, mês que recebeu esse nome em homenagem a Janus, que na mitologia romana é o deus dos inícios. Representado por duas faces em oposição, olha também para o que é findo, para o passado. É o encarregado de abrir a porta para o novo, mas lembrando sempre que as portas têm simultaneamente dois lados: a entrada é ao mesmo tempo a saída.

Sob a metáfora de Janus entramos em 2010, um ano como poucas vezes se viu na política brasileira, tantos são os significados presentes, de passado e de futuro. Alguns dos protagonistas desse ano incomum tentam o impossível. No cenário meticulosamente engendrado pelas duas principais candidaturas oficiosas, de situação e de oposição, Janus está subtraído de uma de suas caras, condenado a ter recortada de sua substância divina a metade da saída, do novo.

A intenção parece ser apenas medir os dois passados, mesmo em prejuízo do futuro que nos une.

Quer-se passar pela porta sem abri-la. Assim, o Janus mutilado da política brasileira fica incompleto para exercer sua função de integrar num mesmo sistema o status quo e a mudança, o ido e o porvir. Em lugar da refinada reflexão mitológica sobre o momento de passagem, entra a soberba imposição de uma queda de braço entre autoavaliações hiperbólicas, a competição entre quem fez mais e melhor aos próprios olhos, como se essa satisfação narcísica fosse um fim em si mesma, acima de tudo, inclusive do próprio país.

A isso se reduziu a política? Perdida sua capacidade de antecipar o futuro, é apenas uma contabilidade forçosamente distorcida entre projetos publicitários de poder, onde o enaltecer-se às vezes se sobrepõe ao reconhecimento do continuum que nos trouxe até aqui e das alternativas para seguir adiante.

O Brasil não pode aceitar esse jogo reducionista e vaidoso, preocupado apenas em medir o passado, sem instrumentos que permitam projetá-lo para o futuro e fazer escolhas. Jogo no qual há que se adotar um lado ou outro, de forma maniqueísta, como se fossem depositários excludentes de todas as virtudes. Saindo da mitologia romana para o ensinamento bíblico do livro de "Gênesis", de tanto olhar para trás podemos nos condenar a virar estátua de sal, como no triste episódio da mulher de Ló.

É preocupante a tentativa de subtrair dos cidadãos a autonomia para fazer suas escolhas, porque o que lhes está sendo apresentado não é a informação completa e necessária para assumir a plena responsabilidade pela decisão tomada. O que podemos desejar para 2010 é, no mínimo, que Deus nos ajude a ultrapassar o portal do futuro com nossos próprios pés.

18 dezembro 2009

No clima

Este corpo não foi a Copenhague, esta mente ainda não voltou de lá. Passei os últimos dias procurando notícias. Marina ganhou todas. Lula, que antecipou sua chegada à reunião antes que a desinformada e arrogante Dilma botasse tudo a perder, acabou assumindo propostas que antes recusava na tentativa de evitar o naufrágio do navio em que viaja com os "líderes" do mundo. Foi engraçado ver, hoje pela manhã, o artigo do Zé Dirceu criticando a proposta de Marina (da contribuição brasileira ao fundo mundial do clima) no exato momento em que Lula discursava na Conferência desse aceitando o "sacrifício" e recitava o mea culpa: isso acontece porque não cuidamos antes. Digo que foi engraçado mas, francamente, nem dá pra rir.
Estive em Brasília em outubro e fiquei surpreso ao notar que Marina, embora falasse da importância da Conferência de Copenhague, não parecia estar ansiosa com os resultados. Perguntei a respeito e ela deu a entender que o resultado real era a mobilização e o esclarecimento da população e que isso já estava ocorrendo, independente das posições oficiais dos governos. Hoje entendi isso com mais clareza ao ler o artigo de Saleemul Huq, que publico agora, no momento em que Obama, Lula e outros "líderes" iniciam mais uma reunião de emergência para tentar chegar, nos últimos momentos da Conferência, a um acordo que não salve o mundo mas ao menos as aparências.

O dia que tudo mudou em Copenhague
Por Saleemul Huq*
Copenhague, 18 de dezembro (Terramérica).- Trabalhei em temas de mudança climática por muitos anos, primeiro como pesquisador em minha Bangladesh natal e depois no Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, e como membro do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Mudança Climática. Vi com meus próprios olhos as ameaças que representam a mudança climática nas regiões secas da África, nas montanhas do Himalaia e nos vastos deltas baixos da Ásia. Testemunhei anos de falta de ação nas cúpulas da Organização das Nações Unidas, que não deram a resposta necessária porque os negociadores escolheram proteger estreitos interesses nacionais e econômicos em lugar de assumir o desafio de proteger as gerações futuras.

Discuti com os que negam a mudança climática e têm fortes vínculos com indústrias poluentes, e que nunca estiveram nas aldeias e comunidades vulneráveis, onde a mudança climática já mostra seus impactos. Se o fizessem, notariam o dano que sua ideologia causa nas pessoas que menos contribuíram com esta ameaça mundial. E agora, em dezembro de 2009, em Copenhague, creio que chegamos a um ponto de inflexão. Copenhague será lembrada nos próximos anos. Não pelo que ocorrer hoje, quando os líderes mundiais encerrarem a 15ª Conferência das Partes da Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP-15), mas pelo que ocorreu no sábado passado.

Naquele dia, gente dos mais diversos estilos de vida de todo o mundo assumiu a iniciativa que deveria ser ostentada pelos que se dizem nossos líderes. Além das palavras que estes presidentes e primeiros-ministros decidirem incluir em um “protocolo” ou “acordo”, é o povo do mundo que tem de escrever no muro. Os líderes que decidirem ler essas palavras nos farão avançar. Aqueles que as ignorarem serão arrastados pela maré da história. O dia 12 deste mês assinala o momento em que grande parte do mundo se levantou para executar uma mudança verdadeiramente global. Haverá retrocessos (como um acordo medíocre esta semana), mas a maré já se movimentou. E não pode voltar atrás.

Mais além do que conseguirmos em Copenhague – e sou otimista, apesar das manobras políticas – estamos em um caminho novo e inexorável. Os líderes que compreenderem isso podem proceder dos lugares mais inesperados. Vejamos, por exemplo, o presidente Mohammad Nasheed, da diminuta Maldivas.

Em poucos meses voltarei a Bangladesh para combater a mudança climática real, para opor-me às más (ou inadequadas) políticas que a abordam. Minha ambição para os próximos anos é ajudar a população de um dos países mais pobres e vulneráveis – e, entretanto, mais resiliente e inovadora – para que deixe de ser o emblema mundial de vulnerabilidade e passe a ser reconhecido como, talvez, o que melhor se adapta.

Volto à minha pátria para criar um novo Centro Internacional para a Mudança Climática e o Desenvolvimento, no qual aspiramos aprofundar a capacidade de governos, organizações da sociedade civil, pesquisadores, acadêmicos, jornalistas e muitos outros atores das nações em desenvolvimento para responder aos desafios que a mudança climática apresenta. O novo centro oferecerá capacitação sobre como sobreviver (e inclusive prosperar) em um mundo aquecido. Focará principalmente na adaptação à mudança climática nas nações menos adiantadas, mas não se deterá nisso.

Na verdade, planejamos criar instrumentos para que os países industrializados possam enfrentar impactos climáticos adversos. Paradoxalmente, o mundo rico que causou este problema não planejou em detalhe com adaptar-se a ele. Volto à frente de combate à mudança climática, onde a luta real já está em marcha. Vou sabendo que milhões de pessoas de todo o mundo compartilham minhas esperanças e meu otimismo quanto a que a humanidade pode unir-se para enfrentar o desafio que pode determinar nossa vida sobre a Terra.

* Saleemul Huq é membro do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento e autor principal dos informes do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre Mudança Climática (IPCC), ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2007.

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.
© Copyleft - É livre a reprodução exclusivamente para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

27 novembro 2009

descaminhos

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O jovem me aborda no terminal rodoviário, entre a chuva e o ônibus, para me perguntar, inicialmente, como vai o PV. Respondo que não tenho intenção de me associar a nenhum partido, apenas vou ajudar Marina Silva no que for possível. Daí passamos a comentar todo tipo de insuficiências do Estado e da chamada sociedade civil diante dos problemas maiores, aqueles grandões, para os quais não há nem mesmo um sonho fugaz de solução.
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Há pouco li um artigo em que fala da obsolescência do Estado. Sim, é verdade, mas não é o único a sofrer desse mal. Há mesmo uma obsolescência do mundo, do pensamento, da civilização, da raça humana. Há uma máquina de non sense ligada e o dia é uma partida de ping-pong entre a ansiedade e a prostração. As pessoas nem sabem por que estão assim chateadas. Qualquer ideologia é tentativa de auto-engano, fuga apressada à depressão, prece balbuciada diante do abismo.
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O que me preocupa é essa estranha mania de me preocupar. Falei ao jovem, antes de entrar no ônibus: o povo se incomoda, se mobiliza e inventa coisas novas, que viram cultura e política. Assim as coisas mudam, Mas depois tudo se acomoda e sobrevém o cansaço. Entramos no refluxo, sem criatividade, insistindo nas mesmas soluções falsas: mais casas, mais polícia, mais petróleo, é assim que estamos agora. Talvez daqui a um tempo apareçam novos caminhos.
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A dificuldade com o Estado é que ele se instala na psique coletiva como uma espécie de Ego, imperativo e inamovível, mediando todas as linguagens ou, pelo menos, tentando estabelecer controle sobre elas. Como o mundo real é muito maior e mais complexo, ficamos sempre com essa sensação de insuficiência: nosso estadinho não dá conta, é areia demais pro seu caminhãozinho. Ficamos, assim, como os governos: caricatos e vulgares no meio de uma propaganda evidentemente enganosa. Fugimos e dissimulamos porque temos vergonha ou, o que é pior, não temos.
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Vi uma proposta de um pessoal em Brasília, chamada Terapia Comunitária. Nem sei bem do que se trata, mas já gostei. Acho que podemos ir recuperando antigas e desenvolvendo novas formas de convivência. É importante que sejam não-institucionais. E que não busquem qualquer objetivo, mas sejam, como se costuma dizer, um fim em si mesmas. Algo assim como as cantigas de roda que as crianças de antigamente costumavam fazer. Por fazer.

13 novembro 2009

Com o tempo...

Poeta levantava-se todos os dias disposto a desmontar a Máquina do Mundo. Lutava com ela enquanto havia luz, às vezes nem parava para comer -um simples descuido e seria engolido, o que, aliás, aconteceu muitas vezes. À noite costumavam descansar e preparar estratégias para a refrega que continuaria, incansável, no dia seguinte. Digo costumavam porque a Máquina do Mundo empenhava-se na disputa, sabia que poderia ser desmontada definitivamente e resistia. Mais: sem a luta de Poeta, não via sentido em existir, era uma máquina inútil e dispendiosa. Mas ele não sabia que sabia disso, apenas lutava e, nas raríssimas vezes que vencia, voltava para casa triunfante, convidava os amigos e tomava uma taça de vinho para comemorar.
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Com o tempo, foram cansando. Nos dias de luta, param para almoçar -e às vezes o fazem juntos, conversando sobre a vida. Terminam cedo, aos sábados.
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Poeta passa agora muitos dias em casa, cuidando das plantas e escrevendo um livro, um longo e minucioso inventário de estratégias para desmontar a Máquina do Mundo.
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Ela também já não se empenha tanto em manter-se funcionando. Tem dias que fica por aí, totalmente destrambelhada. O mundo, por isso, está cada dia mais cheio de falhas e desastres. Mas em alguns dias surpreendentes é invadido por enormes e súbitas ondas de poesia.

06 novembro 2009

Umidades

Chuva todo dia, na lua cheia que passou oculta em nuvens. A manga madura caindo, acabou a fome no mundo. Inverno pegando água, a capoeira crescendo, mato verde brilhando em dias úmidos e amenos. Da floresta vem uma cantiga de força. Quem escuta levanta a cabeça, assuntando, achando rumo, e sai para o tempo a lançar chamados. Avia, menino, que é hora. Vambora, menina, cuida. A rede é boa, a vida é mais.
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Vi as fraquezas criadas em estufas, sentadas em plástico, desenhando no vidro, pensando dinheiro, delimitando vazios. Pareciam fortes, as fraquezas, naquele lugar sem chão e sem céu. Pra não morrer, procurei a porta (nem janelas havia).
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A Terra é meu refúgio, minha restauração. Uma noite cheguei e desci para o açude, nu e distraído. Nas margens encontrei manchas escuras que se moviam devagar. Acendi a lanterna para espantar um bando de capivaras -umas fêmeas com filhotes, o macho gritando ameaçador na ponta da barragem. Outra noite tinha um cachorro magro, doente, sem força para latir -soltava um ganido apavorante e rouco- e ninguém sabe de onde vinha. No meio-dia estava dentro dágua, moribundo, só a cabeça de fora. Esperei que morresse e joguei seu corpo no capim distante, junto a umas árvores onde os urubus tomariam chegada. Vida e morte dão respeito ao mundo, pelas duas aprendo.
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Três palmos já subiu o açude des`que a chuva chegou. Continuar assim, vai sangrar na próxima lua cheia e ficar de um verde limpo refletindo as árvores. Vou viajar em minhas campanhas: uma hora subo os rios interiores pra rever os amigos na floresta, outra hora vou às cidades grandes saber de mudanças no planeta. Tenho este pedaço simples e rude para meus retornos, as voltas que um homem tem que dar ao redor de si mesmo.
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Eu não viria aqui se não houvesse Amazônia.
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03 novembro 2009

Claude Lévi-Strauss (28.11.1908 – 31.10.2009)

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FOLHA - O que o senhor pensa das idéias ecológicas, que se tornaram fortes em todo o mundo e ganharam particular importância em países como o Brasil?
LÉVI-STRAUSS - Sou a favor, e de uma maneira tão extrema que acaba se tornando puramente teórica. O que norteia o pensamento ecológico é que ele proclama a vontade de defender solidariamente a natureza e o homem. Defender a natureza para as necessidades e dentro dos interesses do homem. Estou convencido de que as coisas são profundamente contraditórias. Se tivesse que tomar posições ecológicas, diria que o que me interessa são as plantas e os animais - e danem-se os homens. É óbvio que se trata de uma posição indefensável. Por isso, guardo-a para mim.


FOLHA - O senhor sempre tomou o partido da ciência, mas, na releitura de Montaigne que faz em História de Lince, mostra também suas distâncias em relação a uma fé no conhecimento. O senhor se tornou mais cético em relação à ciência?
LÉVI-STRAUSS - A lição que tirei de Montaigne é que estamos condenados a viver e pensar simultaneamente em vários níveis e que esses níveis são incomensuráveis. Há saltos existenciais para passar de um a outro. O último nível é um ceticismo integral. Mas não se pode viver com ceticismo integral. Seria preciso se suicidar ou se refugiar nas montanhas. Somos obrigados a viver ao mesmo tempo em outros níveis em que esse ceticismo está moderado ou totalmente esquecido. Para fazer ciência, é preciso fazer como se o mundo exterior tivesse uma realidade e como se a razão humana fosse capaz de compreendê-lo. Mas é "como se".


(Trechos de entrevista publicada na Folha de S. Paulo em 3/10/1993)

28 outubro 2009

Menos mal

CÂMARA APROVA REGIME DE URGÊNCIA PARA REFERENDO SOBRE MUDANÇA DO FUSO HORÁRIO NO ACRE

Projeto de Flaviano Melo (PMDB-AC) foi aprovado por 267 votos a favor e 40 contra. Partido dos Trabalhadores (PT) trabalhou ativamente contra a aprovação.

(Leia no blog Ambiente Acreano, de Evandro Ferreira)

26 outubro 2009

Pra clarear

Na terça-feira, dia 20, recebi um e-mail do Jairo Carioca, outro irmão de fé que anda pelos caminhos do jornalismo e agora está trabalhando no site Ac24Horas. Tinha lido uma nota na coluna do Leo Rosas informando minha desfiliação do PT e queria fazer uma entrevista. Mandou seis perguntas, que procurei responder rapidamente, de maneira coloquial e sucinta. No dia seguinte viajei para Brasília e quando retornei recebi o recado de que a matéria havia sido publicada no sábado. Resolvi, então, mostrar aqui a íntegra das perguntas e respostas para que possamos depois conversar sobre política. Quero que minhas opiniões fiquem claras e devo aproveitar o bom ânimo que encontrei na viagem para desfazer confusões. Fica aberta, assim, uma temporada de política neste blog, desde que não se perca a poesia, sempre necessária.

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1 - Sua decisão tem algo a ver com a decisão da senadora Marina Silva, hoje no PV?

Tem tudo a ver. Já estou afastado do PT há muito tempo, há vários anos não participo da chamada "vida partidária". Mas não havia necessidade de formalizar minha desfiliação. Agora a situação mudou, porque a Marina provavelmente será candidata a Presidente pelo PV e eu pretendo, é claro, fazer campanha pra ela. Desvincular-me do PT é uma medida prática para evitar constrangimentos políticos ou problemas jurídicos para mim ou para outras pessoas.

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2 - O PV entre outras ideologias, defende a legalização da maconha. O que vc diz sobre o fato de ir para um partido que defenda essa ideologia?

Não creio que seja necessário filiar-me ao PV para participar da campanha da Marina. De todo modo, parece que o PV vai aprovar uma espécie de "cláusula de consciência", pela qual seus filiados não serão obrigados a defender posições contrárias às suas convicções religiosas e éticas.

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3 - O PV também defende o aborto. Vc acredita em mudanças de paradigmas, ou seja, que com as novas adesões, inclusive a de Marina, o partido mude de concepções?

Nenhum partido defende o aborto. Mas vários defendem a sua descriminalização, entre eles o PT e o PV. Creio que a posição desses partidos não vai mudar. Mas a tendência é que essa questão não seja central e obrigatória; portanto, não resultará em problemas para a Marina ou qualquer outro filiado que tenha idéia discordante. Acho que o PV vai exigir consenso em questões básicas relacionadas ao desenvolvimento sustentável, a conservação ambiental, a justiça social etc. Mas isso é apenas uma previsão pessoal, afinal não sou filiado ao PV.

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4 - Você, Marina e Binho fazem parte da fundação do PT no Acre, porque largar tudo depois de tantas lutas e conquistas?

Largar o quê? A gente se filia a um partido pra defender uma causa, não para ficar agarrado ao poder político ou status social. Neste momento, o futuro da humanidade está em questão, as mudanças do clima no planeta encurtam todos os prazos e o mais importante é fazer com que o povo discuta esse assunto e pressione os políticos a tomarem decisões. Todas as lutas e conquistas que tivemos até agora são importantes, mas são pequenas diante da enorme batalha que temos pela frente.

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5 - Até que ponto vc acredita que Marina Silva poderá ser bem sucedida na campanha presidencial? Que motivos o eleitor acreano teria para votar em Marina e não na candidata de Jorge, Tião e Lula?

A candidatura da Marina ainda é uma mera possibilidade, mas já provocou mudanças enormes no quadro da disputa eleitoral. Mudanças na forma e também no conteúdo, pois a chamada "questão ambiental" entrou definitivamente na pauta de todos os candidatos. Que motivo o eleitor terá para votar na Marina? Simples: ela tem uma proposta para nossa vida, um outro tipo de economia e sociedade. Os outros candidatos tem alguma proposta melhor?

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6 - Para não tomar muito o seu tempo, a Frente Popular de hoje é a mesma criada na década de 90?

É claro que não. Hoje é muito maior, mais poderosa e mais conservadora. Mas isso é natural: assim como as pessoas, as organizações e instituições também envelhecem. A Frente Popular foi um importante instrumento de ação política para esta geração. As novas gerações criarão outros instrumentos. Tudo no mundo se acaba, não é mesmo?

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14 outubro 2009

Rosa dos ventos


1.
Algo que se passa no interior, aqui dentro: subjetivo, talvez, e não interessa a ninguém? Pois eu conto do vendaval que passou. As pessoas viram na TV os vidros quebrados do aeroporto, os aviões com as rodas pra cima, que coisa!, deve ter sido forte esse vento. Foi mesmo. Arrancou árvores ao redor da minha casa, lançou galhos e folhas por toda parte, quebrou as bananeiras, revirou tudo. Isso pode ser objetivo, material e externo para quem não vive na Terra. Leio Drummond: “o mar batia em meu peito, já não batia no cais”; mas há quem não sinta a revolução no mundo.
2.
Faz tempo. Madrinha me contou de um temporal no Alto Santo, em 1950. O vento derribou tanta árvore, que da janela do Mestre dava pra ver a casa do Chico Martins, lá embaixo, longe, quase encostada ao igarapé. Contou que o pai tinha ido pra mata serrar madeira e a mãe estava costurando umas roupas na casa da vizinha e vieram correndo quando ouviram a quebradeira. Vejam só, o mundo ia se acabando antes mesmo de eu nascer. Mas as casas não foram atingidas e ninguém se machucou. Outras árvores cresceram –e depois foram cortadas, os roçados eram grandes naquelas eras.
3.
Dizem que em 9 dos próximos 10 anos o verão amazônico vai ser mais quente do que está sendo neste ano de 2009. Serradilmaciro presidente vai mandar pendurar nos Andes um gigantesco aparelho de ar condicionado, movido a petróleo extraído das profundezas. E eu saio andando com o Davi, pelo caminho que ele roçou arrodeando a capoeira, procurando o melhor lugar pra construir um chapéu de palha. Precisa cavar pra ver se tem água perto e abrir um caminho até o açude. É meu PAC de sombra e água, minha infra-estrutura de desenvolvimento pra lá de humano.
4.
Quanto mais me misturo ao povo, mais aprendo as artes da sobrevivência. Um dia saberei o suficiente para mim e quem precisar. Por enquanto, vou tirando com o terçado os galhos mais finos e empilhando a madeira das árvores quebradas pelo vento. Ajuda a fazer uma cerca, um trapiche, uma escora ou mesmo um fogo pra cozinhar macaxeira. A vantagem de um vento assim é que as sementes se espalham. O terreiro está cheio delas, de todas as espécies, que vieram de longe.
5.
Entrei no Movimento Marina Silva, na internet, que já passa de dez mil associados. Nele vejo textos interessantes, de gente simples que quer participar de uma coisa boa e expressar suas esperanças e também de pessoas experientes ou até estudiosos de assuntos diversos, num fórum aberto a todos os pensamentos. Participei da Conferência de Cultura e juntei-me a um grupo de rebeldes que quer agitar a Conferência de Comunicação. Formalizei minha desfiliação do PT e vou assim desatando alguns nós que ainda me restringem a um tempo partido, para chamar Drummond mais uma vez, “tempo de homens partidos”.
6.
A tempestade de 1950 e a enchente de 1953 são reais e enriquecem minha memória. Também foi grande a alagação de 1911, ano em que foram quase extintos os Kuntanawa e Puyanawa que, hoje, entretanto, renascem com força e esperança. As crianças de agora são jovens em 2026, que seguram seus filhos nos braços enquanto me contam seus planos para 2050. E estes números serão simples marcações auxiliares em uma memória feita de terra, sol, lua, estrelas, enchentes, secas, tempestades, fome, fartura, doença, saúde, guerra, paz... breves e eternos momentos da vida neste planeta.
7.
Aprendo ainda que a esperança não tem medo de ilusões. Costumamos chamar as crenças alheias de superstições e às nossas superstições damos o nome de crença. Nossa ideologia é ciência, a ciência dos outros é ideologia. Nossos crimes são apenas erros, os erros dos outros são crimes. Nossas árvores só dão frutos doces, as dos vizinhos dão frutos amargos. Mas vem a tempestade e joga todas no chão, por igual, e as sementes por toda parte. Vejo, assim, que a condição para manter minha esperança é respeitar e esperança dos outros, mesmo quando me pareçam ilusões. É o tempo quem diz o que há de vingar.
8.
Enfim, estou içando velas e bandeiras para aproveitar o vento que, como dizem as escrituras, sopra onde quer. E quando quer.

05 outubro 2009

A caminho


A pergunta é: como manter a esperança, sem alimentar ilusões?

Pensei e pensei, pois há muitos becos sem saída. Revejo um texto antigo, em que me perguntava se o mundo já tinha passado do ponto de não-retorno, e noto como foi se formando essa certeza de estar vivendo numa espécie de ante-presente, um tempo ineficaz, que não se conta nem se pode contar.

Agora vem Marina com esse chamado, como se ainda desse tempo, como se ainda houvesse jeito –e tanta gente acredita e transfere seus sonhos para outra embarcação, que não posso deixar de me comover. Então vem minha filha Veriana, que daqui a uns dias chega aos vinteanos, e me chama para suas conferências e revoluções comunicativas e culturais, o que me lembra, a um só tempo, que minha descendência neste mundo resulta em inevitável compromisso e que ainda posso ensinar algum ofício, afinal necessário ou ao menos prazeroso, aprendido nas andanças e batalhas d’antanho.

Está bem, vamos.

Reservo-me, porém, o direito de alguma reserva: uma ironia que prometo jamais resvalar para o sarcasmo, boa dose de ceticismo sem a impureza do cinismo, um certo enfado para reuniões já reunidas de conversas já conversadas e distrações freqüentes para olhar a paisagem –afinal, não vim à guerra apenas para guerrear. E não me chamem em dias santos.

Levo comigo uma caneta de ponta muito fina, para desenhar, um velho livro com alguma poesia e a certeza da proteção divina. Faz tempo já me passei para o lado do mistério, mas ainda conheço alguns segredos.

Sou bom na água, melhor na terra. Serei de alguma ajuda.

24 setembro 2009

Só sendo

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O homem só escora-se em si:
num pé e noutro acha seu sustento
- que o chão nunca lhe falta e é tudo que mantém.
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Cego em que o ouvido lhe sussurra
e surdo no que o olho pinta e borra,
engole insosso o pão que a mão sem pele amassa
e não cheira, nem fede.
Inventa por fim outros sentidos e às margens chega
do mar do nada em que não morre ou mata
a sede que não tem.
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O homem só é ninguém.

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14 setembro 2009

Lembrança do Barão

Interrompo meu silêncio –que já completou mês e parece estar no fim- para dizer “obrigado e até um dia” ao professor Geraldo Mesquita, que despediu-se deste mundo na sexta-feira, dia 11.

Não vivi o dia-a-dia do Acre nos anos em que o “Barão” foi governador, entre 1974 e 1978. Passei esse tempo em Brasília, aprendendo a política na escola do movimento estudantil contra a ditadura. Mas já o conhecia da infância e sabia que tinha sido companheiro de meu pai nos jornalismo das décadas de 40 e 50. Comentava-se, à meia-voz, que tinha sido comunista na juventude e que, mesmo depois, quando já tinha sido assimilado pela Arena de Guiomard Santos e dos militares, mantinha amizades com a esquerda. Sua nomeação como governador, portanto, só se explicava por uma tendência à chamada abertura, a “distensão lenta e gradual” de Geisel e Golbery.

No Acre, fiquei sabendo depois, foi essencial para retardar a devastação que se iniciara no período anterior. Pra quem não lembra, não é demais repetir: entre 1970 e 1974, um terço do território acreano foi comprado por sulistas, alguns para instalar fazendas de gado, outros para especulação imobiliária. Élson Martins costuma dizer que havia cheiro de pólvora no ar, naqueles tempos.

Mesquita vinha de um Acre antigo, em que os veteranos que haviam guerreado ao lado de Plácido de Castro ainda eram vivos e ativos na vida pública. Na juventude, leu escondido, de madrugada e à luz de velas, o livro proibido de Genesco de Castro, irmão de Plácido. Permaneceu a vida toda com um forte sentimento regionalista e não se iludiu com promessas de modernização. Acreditava que o verdadeiro progresso viria de uma forte economia rural baseada na agricultura familiar.

Em seu governo, criou uma extensa rede de serviços e órgão públicos destinados a esse desenvolvimento rural. Retirou o apoio estatal aos fazendeiros nos conflitos pela posse da terra, procurou evitar que a polícia fosse usada para reprimir empates de seringueiros, criou canais de negociação com os sindicatos e a Igreja, promoveu a instalação de uma Ajudância da Funai para defender os índios, até apoiou discretamente a resistência que se articulava no jornal O Varadouro, francamente esquerdista. Enfim, segurou a barra.

Durante anos, encontrei-o semanalmente, nas manhãs de sábado, quando levava ao Zé Leite os textos da coluna “Sempre aos Domingos” que assinava no jornal O Rio Branco. Conversa descontraída e cheia de inteligência, como só aqueles velhos sabiam ter. Eu, aprendiz, aprendia. Como filho do Vieira, era incluído na roda com privilégios, como se fosse mais um daqueles amigos da juventude, que tinham farreado nas imediações da Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, onde se originou o histórico apelido.

E tinha mais história por vir. Nas primeiras eleições diretas para governador, a dissidência aberta por Mesquita foi fundamental para derrotar o PDS de Kalume e possibilitar a vitória do PMDB de Nabor. E quando o jovem Jorge Viana se lançou candidato pelo PT, em 1990, apoiou entusiasmado e lançou um manifesto conclamando os acreanos a mais uma revolta na longa linha histórica iniciada um século antes. Participou de toda a campanha e das seguintes.

Quando fui diretor da Fundação Cultural, de vez em quando alguém avisava: o governador Mesquita chegou aí. Procurei sempre interromper qualquer reunião, adiar qualquer compromisso, dispensar quem estivesse em minha sala, para poder recebê-lo imediatamente. Comigo, o Barão jamais tomaria sequer um minuto de chá de cadeira. Tive sempre o maior prazer em conversar com ele. Depois das reclamações e críticas que fazia, e também das sugestões e orientações que dava, sempre me brindava com alguma jóia de sua memória privilegiada, um trecho da história do Acre e do mundo que tinha visto e vivido.

Vi nos sites da internet que muita gente importante faleceu neste final de semana. Não desfaço de ninguém, mas a partida do Barão Mesquita merecia ter sido notada no Brasil, mormente nesses tempos em que o Acre anda na mídia. Sua importância para que chegássemos até aqui foi grande. Nossa geração andou mais rápido porque foi empurrada pelos bons, os melhores da geração anterior.

Sinto-me grato e honrado por ter conhecido este gigante da história, o governador do Acre professor Geraldo Gurgel de Mesquita e rogo a Deus que lhe dê um bom lugar, ao lado dos justos.

13 agosto 2009

Toque de recolher

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Limpar a casa, abrir as janelas, regar as plantas que o verão acreano está forte e seco com seus dias quentes de sol soberano e suas noites frias de estrelas cintilantes. Molhar o dedo na água do açude e erguer ao vento, pra sentir de que lado sopra. Ler o livro antigo. Gengibre limpa, cidreira acalma, tabaco tira reima.
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Ver, ouvir e calar. Desvencilhar-se do emaranhado rasteiro, bater os sapatos ao pé da escada, olhar para cima. Como as onças, reunir todos os músculos ao redor de um ponto no solo antes de saltar. Minguar com a minguante para depois renovar tudo num momento.
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Num momento, tudo.

08 agosto 2009

Por falar em tempestades

O Subcomitê Zero, versão atualizada e zapatista da extinta Comissão de Baixo Nível, resolveu convidar o cantor-compositor-escritor-conquistador Chico Buarque de Holanda para ser candidato a vice-presidente na chapa de Marina Silva. Bom Conselho é uma opção de jingle para este momento da campanha.
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03 agosto 2009

Complexo de Lear

MARINA SILVA

DURANTE CURSO de especialização na Universidade de Brasília, estudei a obra "Rei Lear", de Shakespeare. Talvez a tragédia possa nos ajudar a entender um pouco a política brasileira.

Ao sentir-se velho, Lear decide abdicar da sua condição de rei, do enfadonho encargo de governar. Chama as filhas -Goneril, Regana e Cordélia- para dividir seus bens e poder, anunciando que seria mais agraciada aquela que lhe fizesse a maior declaração de amor. E impõe outra condição: enquanto vivesse, o rei deveria ter assegurado respeito, prestígio, cuidado e, quem sabe, até mesmo o amor de suas filhas e súditos. Quer deixar de ser rei sem perder a majestade.

Cordélia, a mais jovem, com quem o rei mais se identificava, e que muito o amava, não soube dizer o que sentia. As outras não sentiam amor pelo pai, mas eram hábeis na verve.

O que torna sua jornada trágica e dolorosa é que Lear se recusa a retornar ao que um dia foi, um simples homem, rei de si mesmo. Não quer morrer, tornar-se passado. Quer ser sucessivo como é a vida, reviver a fase do prazer de poder. Quer ter séquito e até mesmo um bobo para ninar seu desamparo.

Mas ninguém pode impunemente regredir sem ser atormentado pelo fantasma da repetição. No seu obsessivo desejo de ser amado, Lear agarra-se às palavras de Goneril e Regana. E rejeita amargamente a rebeldia de Cordélia, que só sabia sentir e não se sujeita a ter que fazer uma declaração de amor ao pai, obrigando-o a perceber esse amor no único lugar onde deveria estar: no resultado afetivo de suas relações pessoais.

Não por acaso desmorona o mundo de Lear. O que antes era tão bem definido, passa a ser ambivalente. Certeza e dúvida, coragem e medo, segurança e desamparo. A loucura de não mais saber quem é.

O alto preço por ter almejado e transformado em "ato" o desejo de retornar ao lugar onde um dia esteve e querer assumir a forma do que um dia foi. Ele só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é. E mesmo estes, incluindo Cordélia, não têm mais como aceitar seu governo senil. Até porque foi ele próprio quem decidiu abdicar de ser quem era para tornar-se quem não mais podia ser.

Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo: "Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio".
Genial Shakespeare, trágico rei, frágil humanidade de sempre, que não quer passar. Que infringe a ordem dos acontecimentos, sem o árduo trabalho de elaborá-los. Que desiste de ressignificar-se, e quer tão somente repetir o prazer da sensação vivida nas ilusões de majestade

22 julho 2009

Um avião quase parado no céu

Marina Silva

(Publicado na revista S/N, editada por Bob Wolfenson)

Quando penso em velocidade, e acho que com a maioria das pessoas é assim, tenho a idéia de algo acontecendo muito rapidamente, de um tempo e um espaço a serem vencidos. Embora velocidade também tenha a ver com lentidão, raramente pensamos nela com esse sentido.

Para mim, ela só é perceptível numa relação comparativa. Minha primeira percepção a esse respeito foi por volta dos seis anos, quando vi os primeiros tratores e caminhões na BR-364, então recém aberta, que passava perto da colocação Breu Velho do seringal Bagaço, no Acre, onde nasci.

Colocação é o espaço de vida e trabalho de cada família seringueira. Um seringal se compõe de várias colocações. Numa parte da colocação fica a clareira com a casa, a pequena roça de subsistência, árvores frutíferas, local para a criação de alguns animais e um terreiro. Em torno, numa certa faixa da floresta, identificam-se as árvores para o corte e retirada do latex que vai virar borracha. Anda-se diariamente cerca de 14 quilômetros, o que corresponde a fazer duas vezes o percurso que sai da casa e vai serpenteando por todas as árvores selecionadas, retornando ao ponto inicial. Na primeira passada faz-se o corte, na segunda a coleta. É o que se chama estrada de seringa.

Esse era o nosso universo espacial e temporal. De certa forma ele se transferia para dentro de nós e estabelecia formas de conhecimento do mundo.

A existência de carros rápidos, de que meu pai falava, só ficou palpável com a BR 364. Primeiro, meu pai abriu um caminho até a estrada. Depois mudou a casa para perto dela, num lugar ao qual demos o nome de Breu Novo.

Aí comecei a prestar atenção também nos aviões que passavam de vez em quando. Olhava para o céu e parecia que eles iam tão devagarzinho, de uma maneira tão suave, chegava a imaginá-los quase parados. O avião, o trator, os caminhões passaram a ser referências novas, diferentes do cavalo, da bicicleta. O caminhão, para mim, era de longe o mais rápido.

Passei também a associar velocidade a perigo. Minha mãe e minha avó diziam o tempo todo que era preciso ter muito cuidado. Aparecia um caminhão hoje, outro lá pela semana seguinte ou até mais, mas a criançada tinha que estar sempre atenta “pra atravessar a BR”. Mesmo naquele ermo, tinha-se que olhar para um lado, depois para o outro e só depois atravessar. E, ainda assim, com certo medo.

Mas o impacto maior de conhecer experiências e coisas diferentes de nossas práticas cotidianas, aconteceu quando vi pela primeira vez um fogão.

Desde uns dez anos de idade, eu acordava todo dia por volta de quatro da manhã para preparar a comida que meu pai levava para a estrada de seringa. A rotina era imutável e demorada: levantar, pegar gravetos no monte de lenha, colocar sernambi – pedacinhos de latex coalhado – para queimar no fogão de lenha, jogar nos gravetos por cima. Com lenha molhada, então, fazer o fogo era uma verdadeira batalha.

Todo dia preparava farofa. Às vezes com carne, mas quase sempre com ovo e um pouquinho de cebola de palha, acompanhada de macaxeira frita. Aí botava dentro de uma lata vazia de manteiga, com tampa.

Manteiga era comprada só quando minha mãe ganhava bebê. Meu pai encomendava no barracão – o entreposto de mercadorias mantido pelo dono do seringal – uma lata, pra fazer caldo d'água durante o período de resguardo. Por incrível que pareça, a manteiga vinha da Europa para as casas aviadoras de Manaus e Belém e dali chegava aos seringais do Acre. A lata era uma coisa preciosa. De bom tamanho, muito útil, tinha tampa e desenhos lindos e elegantes.

O ritual de fazer fogo, preparar o café e a farofa e entregar a lata a meu pai levava uns 45 minutos. O que eu sabia de cozinhar se resumia àquilo. Até que vi pela primeira vez um fogão a gás, em Rio Branco, quando tinha uns doze anos. Estava muito doente e fui com minha mãe. Ficamos na casa do meu tio, na periferia da cidade. Fiquei encantada com o fogão. Como era rápido! Subia de repente um fogo azul e era só botar a panela em cima!

Muito mais tarde, morando já em Brasília, estava atrasadíssima para uma votação no Senado e precisava comer alguma coisa antes de sair de casa. Programei o microondas para 45 segundos e fiquei na frente, estalando os dedos, agoniada, como se pudesse apressar ainda mais a máquina: vamos, vamos, vamos! E enquanto estava ali, nessa coisa meio maluca e ridícula, me veio de uma vez à mente a rotina do seringal. Me vi queimando o sernambi, a lenha, fazendo a farofa, preparando a lata de manteiga. O fogo vermelho e barulhento dos gravetos, a descoberta da chama azul do gás.

Acho que a vida toda fui manejando as coisas do tempo e da velocidade, sem perder o meu tempo e a minha velocidade internos. No meu aprendizado de vida, as coisas velozes sempre se associavam à cidade, e as mais vagarosas à floresta. De nossa colocação até o Piratinim, um dos barracões do Bagaço, eram onze horas de caminhada. Dali até a margem do rio, era mais uma hora. E da margem do rio para Rio Branco, em torno de dois dias e meio. Hoje se leva menos de uma hora, por asfalto, para vencer os 75 quilômetros daquele ponto até Rio Branco.

Em geral as pessoas me acham muito calma. Talvez isso tenha a ver com a minha conformação emocional, mas é também um jeito de me relacionar com as dimensões do cosmos, de tal modo que vou internalizando e conciliando a frequência tecnológica e o ritmo frenético da vida urbana e da política com a potência do rudimentar que faz parte de mim e sempre fará.

Na floresta, onde todo deslocamento demandava muito tempo, paradoxalmente recorríamos à velocidade do som para nossas necessidades de comunicação mais urgentes. Quando se queria avisar do nascimento de uma criança, sem ter que andar horas ou até dias pela mata, usava-se um código: dois tiros de espingarda significavam que nascera uma menina; três tiros, um menino. Se alguém morresse, eram sete tiros. E no último dia do ano, doze tiros para compartilhar a comemoração do ano novo.

Nosso totem tecnológico era o rádio a pilhas, um bem quase mitificado. Podia faltar tudo, menos pilha para o rádio. O nosso era da marca Canadian. Meu pai, minha mãe e minha irmã mais velha eram os que sabiam manejá-lo. Ficava bem alto, numa pequena plataforma na parede. Minha irmã tinha que subir no banco para alcançar e meu pai e minha mãe ficavam na ponta dos pés.

E ninguém mais podia mexer, para não prejudicar o ajuste e não dar chiado. Para meu pai, era sagrado ouvir a Voz do Brasil e os noticiários em português da BBC de Londres e da Voz da América. Minha mãe e minha irmã mais velha gostavam das novelas.

O rádio em si atraía muito minha curiosidade e mesmo com todas as advertências, algumas vezes não resisti e mexi. Levava cada carão, pois, é claro, desajustava as faixas e lá vinha o odiado chiado. Uma vez consegui desparafusar a tampa traseira para ver se havia gente dentro da caixa.

Meu pai gostava muito de informação. Minha mãe sempre pedia ao noteiro – o homem que fazia as contas do saldo dos seringueiros e anotava as encomendas de cada família – revistas velhas porventura descartadas pelos patrões, em Belém. De quando em vez, vinham revistas Manchete. Minha mãe separava as páginas mais bonitas ou com muitas fotos para forrar as paredes da casa, um costume dos seringueiros. Mas antes que ela recortasse tudo, meu pai lia tudo avidamente, mesmo sendo notícias velhas.

Nunca esqueci as fotos da morte do presidente Kennedy. Meu pai sentado no chão, com a Manchete aberta no colo, rodeado de crianças, lia em voz alta e explicava o acontecido. Ele já sabia, como fiel ouvinte da Voz da América, mas agora era diferente, tinha o peso das imagens. Ele dizia “presidente da América do Norte”, e não Estados Unidos. Das coisas que meu pai contou, o que mais me impressionou foi que, ao prenderem o suposto assassino, alguém teria gritado: “quebrem-lhe os polegares!”.

Só que, quando olhávamos fascinados as fotos de Kennedy na Manchete de novembro de 1963, já estávamos em 1968, cinco anos depois da tragédia de Dallas. Entre o acontecimento, a informação e a imagem, a completa percepção se arrastara por vários anos. É como se o fato tivesse viajado intacto pelo espaço, em cada detalhe: o estado de choque das multidões, o sangue do presidente, seus filhos tão pequenos, o corpo caído no carro. E de repente tudo isso aterrissou em nosso seringal, sem quebrar a emoção e o impacto, como se fosse uma época invadindo o domínio de outra.

Mas, afinal, o tempo que valia mesmo era o nosso, o das nossas circunstâncias. Não nos incomodamos de saber, com cinco anos de atraso, algo que já era História no restante do mundo. Nossa velocidade, vejo agora, não era veloz. E isso não tinha a menor importância.

08 julho 2009

05 julho 2009

Selma, trinta e uns abraços

Sem uma banda pra comprar presente, sem tempo nem pra escrever, peço as palavras do velho Caetano nesta canção que ele compôs quando ainda eras uma menina magricela nos barrancos do Quinze, que amostrou no aniversário de irmã dele e agora oferto em teu aniversário porque é bem a tua cara, sim, como dizem os acreanos, é mermo!

25 junho 2009

Fuso zero

Estou torcendo para que o Senado aprove o projeto do horário único nacional, por um motivo muito simples: ao invés deste incômodo suportável que vivemos hoje, com o qual os mais mansos já se dizem "acostumados", teremos um incômodo insuportável com o pôr-do-sol às oito da "noite" nos barrancos do Juruá e Purus e adjacências. Daí vou sentar à sombra da gameleira e ficar olhando a confusão dos políticos, um sendo o pai do horário novo e outro sendo a mãe do horário novíssimo, cada um dizendo "vote em mim porque o outro é mais culpado". Enquanto isso, o povo vai cuidar da vida na hora que der.
É bem interessante ver a briga. Os defensores do horário único argumentando com o desenvolvimento econômico, a integração nacional e a transmissão dos jogos de futebol. Os defensores do horário oficial atual se esforçando para falar em cultura, tradição, diversidade amazônica, todas essas coisas que tanto desprezaram no ano passado.
Sinto-me à vontade para iniciar a campanha pela minha antiga proposta: hora livre, sem fuso. Cada um faz o seu horário e vive como conseguir. Obviamente, é melhor para o balconista acertar seu relógio pelos ponteiros do dono da loja. Mas, ao sair do trabalho ou aos domingos, combina o horário com os amigos ou com a namorada. Aos poucos, em meio ao caos, vai surgindo uma temporalidade variada e flexível, livre da escravidão do horário com fuso.
Outra opção interessante pode ser a criação de um horário regional, extra-oficial, para o funcionamento das escolas, comércio etc. Teria, digamos, duas horas a menos que o horário único oficial. Daí as crianças poderiam ir para a cama às nove da noite no horário regional (onze no oficial), porque acordariam na manhã seguinte às seis (oito no Brasil) e teriam a liberdade de assistir à sacanagem das novelas exatamente como faziam antes porque, oficialmente, as emissoras de TV estariam cumprindo a lei -as crianças é que estariam dormindo mais tarde.
Alguém tem outra idéia? Pois combine com suas comunidades e faça, na prática. Só não conte para deputados e senadores, porque esses aí vivem noutro mundo, diferente desse em que nós véve.

08 junho 2009

Baladeiras

1. Na semana passada olhei o tempo e vi os faveiros florando pela metade. Um galho amarelo de flores, outro ainda verde em folhas. Meio verão, meia vida, até as árvores tem problemas de identidade -que tempo, esse! Depois do vento, espera-se a firmeza dos dias e a frieza das noites, o caminho de São João aberto, a mensagem das estrelas. Mas ainda é necessário estar atento para os movimentos que sustentam o céu e os que querem vê-lo desabar.
2. Minha líder, Marina Silva, anuncia que as coisas vão piorar e promete ao mesmo tempo em que convoca: "resistiremos". Voltamos, então, aos tempos da resistência. Pois que seja. Não quero saber de políticas, mas minha velha baladeira ainda está pronta para brincadeiras de tropa e caverna. Não lamento o fim do mundo, não tenho tempo para ressentimentos nem paciência para mesquinharias. All we need is love, diziam aqueles rapazes de Liverpool. É o que importa. Com alegria tranquila olho o mundo deste lugar onde sou. Encontro firmeza no balanço. E ainda sei assar palanquetas.
3. Deixo a Terra desolado, sem notícia do Rapaz. Vizinho disse que foi atropelado na estrada, onde vadiava. Andei mesmo sentindo arrepios no caminho e ouvindo barulhos estranhos na varanda. Se tiver partido, que esteja feliz naquele mundo amplo e estranho do não-tempo, embora minha tristeza de homem velho que já perdeu tantos amigos. E além do mais, isso não é hora de ficar sem cachorro.

25 maio 2009

Bazar de espelhos

Posso dizer que tenho uma comunidade quando a convivência entre os seres que dela participam -mesmo não estando isolados de outros em outras possíveis comunidades, mas em uma autonomia tênue e relativa- cria uma variação de um código de linguagem, um ego-self coletivo com o qual se identificam e um espaço-tempo no qual se sentem "do lado de dentro".

Não se fica, assim, liberto ou distante da "realidade" dos padrões institucionais dominantes e dominados pelo grande mercado de identificações, da multidão, das mídias, do consumo, das máquinas econômicas e políticas, mas pode-se viver um pouco de vida própria: noções de tempo, afetos, preferências estéticas, ética, em tudo se pode criar moldes alternativos e mais íntimos, menos tensionados, menos conflitivos. Na comunidade, o viver pode ser tranquilo.

Pode, mas nem sempre é. Os riscos são permanentes e não vem apenas de fora, pelas tentativas de enquadramento do "sistema", mas pela ansiedade que nasce dentro, a partir do desejo de adequação de indivíduos e subgrupos aos padrões de excelência e vantagem, às oportunidades que vislumbram tanto na feirinha quanto no supermercado das identidades: afinal, todos querem ser.

O que vale para grupos, vale para cada um. Os espaço-tempos do mundo lá fora, da comunidade ou dos subgrupos existe no ser de cada ser e acontece na relação de uns e todos. Resumindo: corrigir os outros é me corrigir nos outros.

19 maio 2009

Descredo

A representação é essencial na arte, coisa muito boa de se ver. Conheço seu truque, que tenho usado, como todo mundo usa, há um tempo muito maior que a memória. Figuras, inclusive as de linguagem, são para o deleite da mão que as cria e do olho que as aprecia, mas sua beleza ou inteligência desaparece quando são chamadas de realidade ou verdade. São figuras, justamente figuras, nisso reside toda sua realidade e toda sua verdade.

Ando cansado de argumentos. Sou dono de uma boa porção da retórica que existe no mundo, conheço sua força e fraqueza, seu movimento de torção, o ponto de apoio de suas alavancas, suas substituições: causa por efeito, todo por parte, conclusão por hipótese, tantas por quantas. Também no bonsai se torce a planta –e a poda das raízes é o mais importante- até que o ser se dobre à mente.

Observo a sedução dos planos: a projeção que se estica até onde o cálculo alcança e, mais além, ousada, faz uma pirueta no ar. Parece inevitável que mundo e o tempo a sigam. Apenas parece. A estratégia é boa no jogo, mas às vezes perde para a sorte ou para quem não obedeça às regras.

A objetividade é uma coleção de inutilidades, mas a subjetividade também virou coisa que se compra na esquina. Nisso a indústria humana foi eficiente: replicar modelos mentais em quantidades infinitas e dimensões variadas até que ocupassem todo o espaço e o tempo. Razões perecíveis, emoções descartáveis. Mais lixo.

Sinto-me velho demais para ser idealista e ainda muito jovem para ser pragmático. Ingenuidade e cinismo brincam de mocinho e bandido, na rua, em frente à minha casa. Termina sempre em briga e choro, antes que as mães chamem para tomar banho e levar uns bons esfregões no pescoço e atrás das orelhas.

***
Cresce em mim a força silenciosa do invisível indizível.

11 maio 2009

Caminho da Terra









A estrada da Terra vai dar no céu, se eu souber andar, se eu parar e respirar, se eu cantar. A estrada da Terra vai dar no céu, se eu olhar onde piso, onde pisei, onde vou pisar. Se eu olhar para todos os lados. Se eu olhar para cima. Porque o caminho não existe sem mim. Na verdade, o caminho existe em mim. Por ele, posso chegar a qualquer inferno da dor e da loucura, posso cair no abismo do nada, posso me perder no escuro, posso dar com a cara no muro. A cada passo, em cada rumo, uma vontade me move. Ao vento lanço meu brado: existo! Sou esta gota de suor no peito, a têmpora latejante, o ar nas narinas. Sou este ombro que aguenta carga e para o qual a carga é leve. Sou o pensamento, a prece, o cansaço, o alívio da chegada. Sou o destino, onde quero chegar. E se eu quiser chegar ao céu, então a estrada da Terra vai dar no céu.



06 maio 2009

TEMPUS FUGIT

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Ainda não se decidiu, o vento, se é de chuva ou de friagem. Mas o dia cinza e friorento introduz possibilidades de um verão acreano, daqueles que vareiam e contrareiam gramáticas e meteorologias. E como a filosofia e a poesia raramente sobrevivem em temperaturas acima de 30 graus centígrados, aumentam as chances de oscilação bipolar, embora assim graduada, no ânimo dos povos da floresta. Ontem era dia de ocupar a praça com protestos, hoje para tomar tacacá.

Enquanto isso, a vida vai passando. Oitenta anos, noventa, um dia as pessoas vão embora. Quem fica, conversa um pouco sobre o assunto -esse, a morte- que, por incômodo, não se demora. Entretanto, dizem que a enchente de 53 só não foi maior que a de 11, lembrada pelos antigos como o dilúvio. Isso significa que há diferenças entre viver agora e em outro tempo, o que certamente implica em algumas responsabilidades. O esforço para pensá-las é que parece ser muito grande -pela poesia ou pelo tédio- no frio como no calor.

Imagine se tivéssemos tempo.
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30 abril 2009

Outro Abril


sem que se perceba uma idéia se insinua nua linha na agulha entre panos planos desenganos caetanos escorre nos quintais da chuva e um mês assim vai índio tiradentes descobrimentos na cheia dos rios veias do avô português a tez descendente de acreano irredutível eterno navegante

27 abril 2009

(ainda a água)

Não sei muito acerca de deuses, mas creio que o rio
É um poderoso deus castanho –taciturno, indômito e intratável,
Paciente até certo ponto, a princípio reconhecido como fronteira,
Útil, inconfidente, como um caixeiro-viajante.
Depois, apenas um problema que ao construtor de pontes desafia.
Resolvido o problema, o deus castanho é quase esquecido
Pelos moradores das cidades –sempre, contudo, implacável,
Fiel às suas iras e épocas de cheia, destruidor, recordando
O que os homens preferem esquecer. Desprezado, preterido
Pelos adoradores da máquina, mas esperando, espreitando e esperando.
Seu ritmo estava presente no quarto das crianças,
Na álea dos ailantos dos quintais de abril,
No aroma das uvas sobre a mesa de outono
E no halo vespertino dos lampiões de inverno.

(T.S.Eliot, The Dry Salvages, tradução de Ivan Junqueira)

24 abril 2009

Poesia adiada

Passei aqui pra deixar uma poesia.
Mas quando eu vinha pra cá, dobrando ali a esquina,
encontrei um mendigo que precisava dela
mais do que eu, mais do que vocês.
Fica pra próxima, tá?

18 abril 2009

Pra lá

Passei um tempo incomodado com uma névoa, um ente, uma coisa que rondava os dias e as noites e se apresentava como o Fantasma da Razão, uma espécie de assombração iluminista, um espírito encrenqueiro e argumentativo, interesseiro e interessado em provar que estava certo em tudo e, mais ainda, que era a medida de todas as coisas, o pensamento correto e único, o espaço em que todos os fenômenos buscam permissão para acontecer.
O encrenqueiro ficava futricando qualquer assunto -tem pinimba com tudo-, por mais importante ou banal: queria botar regra na formação das nuvens, na organização das festas, na evolução das espécies e na mudança de paradigmas -dos quais, aliás, se achava o dono e senhor e único criador.
O sujeito era mesmo metido, com sua régua na mão o tempo todo, mas dei um jeito nele e em suas mesquinhas medidas. Olhei o vento levando folhas, ouvi a chuva caindo sobre o açude, pisei no chão encharcado, senti o cheiro do mato e o gosto do biribá. Sussurrei antigos versos: "si quieres ser feliz como dices, no analices, no analices, no analices".
O chato encheu os parâmetros e foi atentar noutra freguesia.

13 abril 2009

Jejuns

Andei fazendo jejum de palavras na Semana Santa, que o silêncio é alimento fino para ser degustado em calma. Algum dia andou se alongando, entrando pela noite, varando a madrugada até emendar no dia seguinte. Outro ficou quebrado por uma vinda à cidade, no meio da tarde, passagem rápida diante de um computador, notícias do mundo, visão do conflito, trânsito de pressas. Algumas coisas aprendi, outras esqueci. Mais que tudo, vi a chuva que choveu choventamente. Para mim, dádiva e beleza. Caos no trânsito e dezenas de famílias desabrigadas. A natureza é um problema social. Est'outra semana será menos santa, talvez. Mas vou aprendendo, aos poucos, que certos problemas não são meus.

06 abril 2009

se muove

Tem muito mais, só que agora não lembro. Começa a Semana Santa e ando meditando. Dou uma volta maior para não entrar no deserto da política, aridez inóspita em pleno inverno amazônico, onde dançam e gritam miragens e fantasmas. Encontrei o Rapaz, magérrimo -só a tala, coitado-, na estrada lamacenta, na confusão de um bando atrás de uma cachorra no cio, não quer ir em casa nem pra comer. Agora vou ver como ficou o açude depois da maior chuva dos últimos tempos. No mundo, a crise aguda está virando crônica. No outro mundo, movimentos sutis. Um desenho está se formando, ainda não dá pra entender. A vida é bela e estranha. E tem muito mais, só que agora não lembro.

30 março 2009

Porque ler o mesmo livro tantas vezes

.......- Tenho mais alguma coisa para lhes dizer, que é muito mais séria -muito pior no que se refere aos Nativos, se não a vocês. Este planeta tem um inimigo. Não tinham percebido isso?
......Silêncio. Mais uma vez a palavra "inimigo" parecia passar por eles, diluindo-se na atmosfera da sala. Simplesmente era como se não soubessem onde encaixá-la. É uma sensação estranha, quando durante toda a vida se pensou em termos de confronto e superioridade, tratados e manobras políticas necessários para combater os vilões das galáxias, encontrar-se inesperadamente entre pessoas que jamais pensaram em termos de oposição, muito menos de maldade.
.......Tentei um pouco de humor:
......- Pelos menos devem saber que existem inimigo! Eles existem, sabem? Na verdade estão sempre ativos. Nesta nossa galáxia existem forças do mal em funcionamento, e são muito fortes...
.......Pela primeira vez entreolharam-se, com o movimento instintivo que é sempre sinal de fraqueza. Procuravam descobrir nos olhos dos companheioros o significado dessa coisa, "inimigo". Contudo, em seus primeiros relatórios, no início das nossas experiências em Rohanda, diziam que haviam rumores sobre espiões, e naturalmente espiões implicavam a idéia de inimigos, até para o mais inocente.
......Percebi que eram uma espécie que, por algum motivo imprevisto, não podia pensar em termos de inimigos. Eu mal podia acreditar. Jamais vira nada parecido em outros planetas.
(em Shikasta, de Doris Lessing)

15 março 2009

10 março 2009

Sem acordo

Confesso que fico irritado com essa pressa dos jornais e jornalistas acreanos em aderir ao tal acordo ortográfico. Agora, onde se pode colocar "do Acre" eles substituem por "acriano", para demonstrar sua alegre rendição às novas regras. Fiquei ainda mais chateado quando vi releases da Agência de Notícias do governo estadual usando tal aberrante palavra. E agora, pra completar, um supermercado que tinha por slogan "orgulho de ser acreano" já declara, em suas propagandas, orgulho de escrever como os colonizadores e colonizados d'além mar.

Todo mundo sabe que isso é golpe da indústria do livro, qualquer um é capaz de imaginar o tamanho da bolada que o governo vai gastar, nos próximos anos, republicando todo o material didático, do primeiro ano à universidade. Uma mina de ouro. Necessidade mesmo, não existe. Ninguém deixa de entender um romance do Saramago por alguma palavra grafada sem hífen, subumano ou coisa semelhante, assim como não é preciso traduzir Guimarães Rosa para que os portugueses o entendam e apreciem.

Eu havia decidido ignorar essa reforma idiota. Como escritor, não necessito dela: uso meu idioma, aquele que aprendi de meu povo e que vou aperfeiçoando e adaptando às minhas preferências. É um lindo idioma, com origens diversas: no português antigo, no nheengatu, nas influências de diversas imigrações, nos sucessivos colonialismos culturais, na criativa reação popular, na antropofagia dos modernos, na contribuição regional de panos e aruaks... o que faltar, vou inventando.

As regras são simples. Sei que aqui cabe uma vírgula mas por estilo não coloco. Onde não cabe, entretanto, coloco, por prudência e para facilitar o entendimento. Devo ter usado o trema duas ou três vezes na minha vida. Logo percebi sua inutilidade e não preciso que me venham agora, tantas décadas depois, dizer que posso escrever tranquilo sem colocar aqueles dois pontinhos tão apreciados por alemães e noruegueses.

A liberdade que tenho corresponde a uma grande tolerância para com os erros alheios. Se deixo de seguir as regras que conheço mas não aceito, não fico espezinhando aqueles que não seguem por ignorância. Não sou revisor do mundo e, embora pense que os comunicadores devam escrever com um razoável grau de correção em respeito ao senso comum, defendo a idéia, já expressa por um famoso escritor antes que eu nascesse, de que a crase não foi feita para humilhar ninguém. Aliás, o erro pode estar -e frequentemente está- a serviço da evolução da língua e do alargamento de sua abrangência. Tendo a achar tudo interessante mas, francamente, uma reforma que faz com que tantos escribas passem a se autodenominar "acrianos" é uma lástima.

Nasci no Acre, vou morrer acreano.

03 março 2009

Inveteratividade


Aos 15 anos e meio, Samuel saiu-se com essa. Conversávamos na parada de ônibus e ele tentava explicar não sei o quê, que tinha puxado mais para a mãe enquanto a Veriana era herdeira "desse seu talento, essa sua... (procurou uma palavra e veio esta:) inveteratividade".

Tentei especificar: você está se referindo a essa coisa da palavra escrita? Não -respondeu-, as outras coisas também, a loucura toda.

Bem, seja lá o que for essa capacidade de ser inveterado em qualquer coisa, parece que a Veriana pegou de mim, e é a parte que dói, acho, e induz a gente a ficar acordado madrugada adentro, em alguma obsessão. Há, certamente, algum talento que escorre em meio às horas. Meu dom, minha cruz. Não sei se gosto de lembrar a canção: "ah, meu amigo, meu herói, ah como dói saber que a ti também corrói a dor da solidão".

Mais tarde falei com Samuel ao telefone para pedir que ele lembrasse a palavra. Ao ouvi-la novamente, achei muito engraçada e disse: bem, você ainda é muito novo para ser inveterado em qualquer coisa. Depois fiquei pensando. Sei que há um bocado de escolha nas identificações que a gente vai fazendo para defender a mãe, guardá-la dentro do peito, recusando algum pai que ameace a integridade e a delicadeza inefável daquela pureza que a gente não quer perder. Um dia, porém, a força oculta do pai também se revela.

Comigo aconteceu depois dos 30 anos, já andando sem pai nem mãe no mundo, quando um dia, cruzando a perna como ele cruzava, erguendo a sobrancelha como ele erguia, fazendo aquele gesto, sorrindo aquele sorriso, percebi meu pai em mim. No começo incomodou, depois me acostumei, hoje nem noto mais.

Inveteratividade. O velho Vieira era um inveterado, sem dúvida, seja lá no que fosse. E agora que o neto dele me deu esta palavra, será mais fácil me livrar de umas dores que vem me deixando torto e mal-dormido, deixar para trás algumas cargas que estavam pesando em meu ombro.

Posso até começar uma história nova, ou lembrar de alguma antiga.

20 fevereiro 2009

Farinha com mel

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Primeiro é preciso entender a dinâmica da mudança, suas "leis" internas, seus fluxos, contradições e tempos, sua concepção, nascimento, maturação, estagnação, rupturas, avanços, retrocessos, lucidez, loucura. Conhecer a mudança, como ela é, por fora e por dentro.

Depois é preciso entender o estar-na-mudança, de como a percepção vira pensamento, que vira percepção, como ambos resultam em ação, que vira mais percepção e pensamento.

E ainda é preciso estar integrado e separado, ao mesmo tempo. Se eu estiver totalmente integrado, vou simplesmente fazer parte, estar em conformidade, seguir a corrente, a manada. Se estiver totalmente separado, não posso influenciar nem dar rumo. Um tanto de uma coisa, um tanto de outra... é como comer farinha com mel: mais farinha e fica seco, mais mel e fica melado, e por aí vamos.

19 fevereiro 2009

Construção

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Dez e meia da noite, na parada de ônibus, esperando o Custódio Freire que, como o nome indica, custa a chegar. Aproveitando a nova iluminação da avenida, tiro da mochila "Um Inimigo do Povo", de Ibsen, que o companheiro Itaan Arruda me emprestou -e já me cobra a montagem da peça que ainda nem acabei de ler.

Saem da zona de penumbra entre a avenida e o Parque três adolescentes, aí pelos 14 ou 15 anos, magros, cabeludos e suados, deslizando sobre seus skates. Param no portão da escola tentando avistar o vigia. Não conseguem, e um deles vem pular o muro perto da parada de ônibus, levando nas mãos uma garrafa de plástico para encher com água. Os outros dois ficam sentados na calçada, logo atrás de mim, com aquelas conversas ininteligíveis e banais, tipo assim eu ia na casa dele mas não rolou e tu ficou de me ligar e amanhã só.

Olhei a mochila sobre o banco, calculei o tempo de colocar o braço na alça, mas não identifiquei qualquer traço de agressividade na voz dos garotos. Sou, atualmente, um homem arrombado: um ladrão entrou em meu escritório enquanto eu viajava e levou um laptop, ao mesmo tempo em que outro entrou na minha casa para levar meus bujões de gás. Quando cheguei estava só o estrago. A "questão de segurança" que, como todo militante velho sabe, tem precedência sobre todas as outras, passou a fazer parte do dia e da noite, dos relacionamentos, da estética, da vida. "A vigilância cuida do normal" virou cultura. Mas ainda acontece de serem apenas garotos cansados e suados de zoar no Parque com seus skates, pulando o muro de uma escola para buscar água.

Não sei se algum deles percebeu qualquer traço de tensão em meu silêncio debruçado sobre o livro, mas justamente o que parecia mais jovem lançou no ar um contato, antes de tomar o último lugar na fila que desapareceu novamente na zona de penumbra de onde tinha surgido: "amou daquela vez como se fosse a última", cantou, e afastou-se com uma pedalada.

Com displiscente perfeição, o jovem skatista noturno entoou o primeiro verso de "Construção", música que Chico Buarque compôs no início dos anos 70 do século passado, quando, provavelmente, o pai deste garoto cujo rosto não vi ainda não era nascido e seu avô andava nas errâncias da juventude -como eu, que tenho idade para sê-lo, também andava.

Surpreendentes são as paradas de ônibus, às vezes.
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16 fevereiro 2009

Mudar

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Entretanto, como largar as penas? As dores longamente cultivadas até que ficassem firmes, espetadas na carne, as cores vivas com todos os tons de todas as emoções, como deixar ir no vento e permanecer, trêmulo, com a pele arrepiada de frio e esperança?

Nessas horas o pássaro não canta. Mas o canto é o que tenho. Vou começar, portanto, ainda que quase inaudível, numa tarde nublada do inverno amazônico. E o tempo dará o tom e a melodia, que o tempo muda e demuda tudo.

E não se trata de uma decisão pessoal. Há um vento, um chamado, uma vontade cuja origem é difícil de identificar, mas que me inspira confiança para navegar nesta era da incerteza. Mas a responsabilidade é minha e ainda que eu quisesse ser impessoal, não conseguiria. O que quer que seja, não é lá fora.

Assim, numa tradução totalmente livre de Heráclito: "se escutares, não a mim mas ao logos que fala em mim, concordareis que Tudo é Um".

Então, que venha o Tempo.