31 agosto 2022

 De quem é esse buraco?





No mês passado começou, mais uma vez, a tentativa que se repete, todos os anos, de invadir um terreno aqui na Estrada Irineu Serra. É um terreno de 27 hectares pertencente ao Estado. Fica colado a uma Área de Proteção Ambiental (APA) municipal, que foi decretada pelo prefeito Angelim em 2005 para preservar o único trecho de floresta que ainda resta no perímetro urbano, nas margens do igarapé São Francisco, e o patrimônio histórico e cultural da comunidade de origem do Daime. 


Desde o início, a comunidade alertou o governo para a importância do local, onde existe a baixada de um antigo açude e não é apropriado para habitação. Afinal, nos arredores já vivem milhares de famílias pobres, sem saneamento, sem posto de saúde, sem segurança, com transporte precário. Colocar mais algumas centenas de famílias no local só pode piorar a situação. Mais adequando é instalar um parque, com área de lazer, uma escola técnica ou a sede da Secretaria de Meio Ambiente, enfim, algo mais de acordo com a importância ambiental e histórica da área e que melhorasse a qualidade de vida e a saúde da população nela residente.


Todo ano tem um começo de invasão. Mas os governos passados, embora não encontrassem uma destinação adequada para o terreno, ao menos cuidavam dele. Cada tentativa de invasão durava poucos dias, logo vinha a ordem de desocupar a área. Este ano, entretanto, está sendo diferente. Apareceu uma invasão com assessoria jurídica, demarcação organizada de lotes, espaços reservados para futuras ruas e carros novos estacionados nas proximidades, nada de fuscas ou pampas. A lona dos barracos já está dando lugar à madeira e aparece, aqui e acolá, algum tijolo.


A comunidade do Irineu Serra pergunta, escandalizada: cadê o governo, que não cuida do terreno? E olha, que não é um terreno qualquer. Por causa dele, o governador Gladson Cameli brigou com uma ruma de empresários quando anunciou que ali seria instalado um Centro Administrativo, uma obra de 300 milhões, dos quais ele disse já ter 100 milhões e por isso estava publicando o edital de licitação. E no início deste ano, o senador Márcio Bittar anunciou que tinha uma emenda para construção de 470 casas e o local escolhido, adivinhem, era aquele mesmo. O terreno tem um grande buraco, onde ficava a parte mais funda do antigo açude, mas não é um buraco insignificante, tem importância orçamentária federal e estadual. 


Em Rio Branco, as invasões costumam ser protegidas ou patrocinadas por políticos. Todo mundo lembra da “invasão do Alípio”, patrocinada pelo célebre vereador ativo e operante nos anos 90, que depois foi batizada de Bairro Raimundo Melo para ganhar a proteção do governador, depois senador, Flaviano Melo. Estão aí na cidade bairros com nome de Ilson Ribeiro, Mauri Sérgio e vários outros, oriundos de invasões que buscavam proteção dos homenageados ou de seus amigos que estavam no governo ou na prefeitura.


Pensei, então, que a invasão na estrada Irineu Serra poderia ter o patrocínio de algum político importante, que tenha o poder de paralisar o judiciário e a polícia para que deixem as coisas correrem soltas. Afinal, estamos numa campanha eleitoral e ninguém quer perder votos, não é mesmo?


Além dos nomes do atual governador e do senador já citados, ambos candidatos na eleição deste ano, quem mais teria interesse em ser bonzinho com os loteadores do terreno, pra não aparecer como “perseguidor” e, quem sabe, até garantir gente para “trabalhar na campanha”, que é como se chama a atividade da indústria eleitoral que reduz o desemprego de dois em dois anos?


Pensei no prefeito Bocalon, que instalou uma tenda no local no Dia do Meio Ambiente, plantou árvores na estrada e fez discurso ecológico. Nos últimos meses, a Prefeitura, que é responsável pela gestão da Área de Proteção Ambiental, simplesmente desapareceu. Ninguém dá as caras, nem sequer manda um áudio para o grupo de whattsapp do Conselho da APA. O secretário de Meio Ambiente, Normando Sales, afastou a funcionária que atendia à comunidade e sumiu no trecho, não faz contato nem por telefone. Estarão eles, prefeito e secretário, muito ocupados com a campanha de seu padrinho Petecão?


Eu poderia incluir o ex-prefeito Marcos Alexandre e o ex-senador Jorge Viana, candidatos ao governo, na lista de possíveis patrocinadores da invasão, mas não tenho qualquer indício de que estejam metidos nisso. O partido deles, sabemos, há muito tempo saiu do ramo de ocupação de terrenos. E o ex-prefeito, que deu grande apoio à APA na sua gestão, não ocupava um cargo na assessoria do poder Judiciário assim tão importante, que pudesse paralisar a ação de despejo que o juiz, afinal, emitiu. 


O Ministério Público? Difícil dizer. Tem legalmente o poder, que raramente usa, de mover ação contra o governo quando este foge de sua responsabilidade na proteção do patrimônio público, o que parece ser o caso. Suponho que o MP esteja acompanhando o assunto, mas com qual empenho e agilidade?


Enfim, não sei qual será o nome do futuro bairro, se a coisa prosperar. Conversei com os vizinhos, com a presidente da Associação, estão preocupados porque a situação está seguindo adiante, e certamente sob a proteção de alguém. O último boato que ouvi é de que o governo não tirou os ocupantes da área porque ninguém pode ser despejado no período da pandemia. Ora, isso é um direito de quem mora numa área, não para quem está entrando nela agora. Duvido que exista um decreto permitindo invasões durante a pandemia. 


E a ação de despejo não é difícil. Afinal, não tem famílias morando na área, com crianças e gatos e cachorros, não tem banheiro nem água nem luz no local. Ficam lá alguns adultos e durante o dia, quando chega a noite vão para o local onde “não moram”. E mesmo que exista lá gente necessitada de terreno e casa, o despejo não precisa ser com a polícia. Serviria até de boa propaganda levar ao local os órgãos de assistência social para atender as reivindicações dos ocupantes e providenciar sua transferência para um local onde possam ficar em segurança. 


Fiquei cismando, esses dias, enquanto cuido da tosse das crianças, agravada pela imensa queimada que, na semana passada, consumiu boa parte da mata em regeneração no terreno em frente à invasão -este sim, dentro da desprotegida área de proteção. Pensei que talvez a imprensa possa ajudar. Quem sabe aparece um repórter interessado em ganhar o prêmio de um desses concursos que acontecem todo final de ano, com a melhor reportagem investigativa sobre o grave problema do deficit habitacional. Talvez esse intrépido repórter possa descobrir quem, afinal, é o dono daquele buraco e detém o poder de tampá-lo ou aprofundá-lo. 


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