1.
Os poucos, porém fiéis e atentos leitores deste blog não me permitem desatenções. A pretexto, pois, de explicar os termos da despretensiosa e –reconheço- descontextualizada mensagem anterior, pretendo passear por outros tempos e espaços na tentativa de espantar uma restrição mental que resulta em textos de baixa qualidade, além de aproveitar a ocasião para reavivar o gosto por uma boa conversa e, de quebra, quem sabe, reverter a queda evidente e acentuada de minha popularidade, embora com percentuais ainda não revelados pelos institutos de pesquisa.
2.
Começo desembarcando em Brasília depois de um torturante vôo noturno, carregando minha mochila e meu cansaço até o apartamento em que o Senado abriga minha líder Marina Silva. Encontrei-a, mal iniciado o dia, empenhada em promover a paz e a convivência harmônica entre diversos eus, nós, eles e outros que navegam nas embarcações políticas de sua frota cada vez mais numerosa. Após algumas providências e conversas pacificadoras, atendeu-me com café e explicação: “uma coisa que desenferrujou na minha cabeça foi a política”. Apelei, pois, para sua proverbial caridade cristã: “então, por favor, me arranja um pouco de óleo porque na minha cabeça a política continua rangendo”. Ainda bem que Marina é tranqüila e lúcida o suficiente para recusar uma boa parte de meus palpites, se fosse segui-los brigaria com meio mundo. (Sei que sou um bom assessor pela qualidade daqueles a quem assessoro.) Deixo a coerência para quem dela precisa e posso promover foguetórios verbais na fronteira da liberdade com a irresponsabilidade. Mas para poucos e íntimos, é claro, que não sou de escândalos.
3.
Uso com parcimônia cada vez maior esses pronomes coletivos, nós e eles. Depois de tanto tempo com a impressão de um “eu” tão próximo, reconhecível e confiável, percebo cada vez mais claramente sua impermanência, fragilidade e estranheza. Como definir, então, fronteiras de identidade e alteridade para o que quer se seja, abraçar ou empurrar, aliar-se ou opor-se? Resta-me o recurso das aspas, gasto e parco, para mostrar minha consciência de que essas separações existem quase como fantasmas ou talvez as proverbiais bruxas em que no creo, pero las hay. Afinal, parece que “nós” guarani-kayowá não estamos muito contentes com “nós” fazendeiros no Mato Grosso. E o que digo “eu”? Crianças, deixem disso e vamos todos rezar? Guerra e paz, amor e ódio... não fico satisfeito com dualidades. Mergulho mil vezes na multiplicidade e, para não me afogar nela, levo comigo a sentença de Heráclito, que coloquei na proteção de tela do meu computador: Tudo é Um. Mas às vezes “eles” se esquecemos.
4.
Ainda tenho esperanças de que seja possível formar e manter comunidades, de resto uma idéia muito interessante. Mas como fazer isso? Durante duas décadas, antes de sermos assumidos pelo poder de Estado, percorremos rios e varadouros para dialogar com as comunidades da floresta na linguagem dos projetos. “Cultura de projeto” foi a expressão que usei para designar um conjunto de relações que nasceram nas ONGs e que depois “nós” levamos para o Estado. O projeto tem um roteiro: objetivos, justificativa, estratégia, cronograma etc. etc. e, no final, o mais importante: orçamento. Costumo brincar dizendo que o projeto tem, oculto, um fundamento militar; trata-se de um “projétil”, que sempre tem um “público-alvo” a ser “atingido”. Obviamente, não estou condenando os sonhos, a projeção do futuro, o planejamento, nada disso, embora também não morra de amores por todos esses disfarces do desejo de controle associado à idéia de um tempo linear, por mais criativos que sejam, nem esteja conformado com uma condição humana –momentânea, coisa de poucos milênios- em que se desenvolveu o vício de projetar o pensamento para “passado” ou “futuro” ou qualquer lugar distante do agora, deslocando assim o estar para fora do ser. De todo modo, como às vezes faço guerra ou amor e eventualmente digo “nós” e “eles”, também ainda faço projetos. Não sou, como já reconheci, um exemplo de coerência, mas é preciso sobreviver e, para isso, fazer uso de coisas muito próximas da vilania, como estratégia, objetivos, planos e –argh!- política. (Marina, vou mesmo precisar daquele óleo no cérebro.)
5.
De todo modo, fiz aqui –e mantenho- uma rápida constatação de que no enfrentamento de projetos, estamos, quem quer que sejamos “nós”, perdendo para aqueles, quem quer que sejam “eles”, que projetam a devastação. Bem lembrado o caso do Casarão. Ali, ao lado do velho avarandado de madeira, próximo ao quartel da antiga Guarda Territorial, em frente à pracinha do coreto, onde ficam a Escola Normal e o Hotel Chuí, estão querendo construir um monstro brega com enormes arcos modernosos, mais uma ofensa ao patrimônio histórico, à memória, à paisagem, à identidade e até à sensibilidade. “Eles”, que projetam essa agressão, são os mesmos que destruíram boa parte do patrimônio arquitetônico erguido entre 1940 e 1970 para instalar torres de vidro, arcos de concreto, fachadas de metal, quiosques de fibra e um amplo arsenal de breguices. E “nós”, o que fazemos? Ficamos vendo o monge Zen eliminar o problema com sua espada jurídica, dizendo que não pode “engessar” a cidade e que o patrimônio antigo tem que conviver com o “moderno, vivo e vibrante”? E esse é só um dos casos que não conseguimos nem empatar, posso citar uma dezena e deixar outra guardada no bisaco.
6.
Com essas pernas, como dar passos sustentáveis? Antigamente, antes da cultura de projeto, dizíamos “auto-sustentável” (lembram-se, companheiros?), porque achávamos que ninguém ia nos dar de comer e não imaginávamos quão bom era o preço pelo qual venderíamos nossa autonomia. Agora ninguém trabalha de graça, a definição é pré ou pós-pago. Marina vive falando (sempre ela!) nos tais “núcleos vivos da sociedade”, parece que existem por aí alguns grupos, pessoas e até organizações fazendo coisas interessantes e auto-sustentáveis. Tenho insistido na necessidade de criar moedas paralelas, de circulação local, capazes de facilitar as trocas em sub-sistemas econômicos de âmbito comunitário ou regional, sustentando o trabalho e a arte de gentes variadas. Existem experiências interessantes no mundo e até nesses novos paraísos consumistas como Índia e Brasil. Mas será que a moda pega, será que chega aqui?
7.
Por enquanto, continuo achando sedutora a visão daquele poético anônimo que imagina a extinção do homo sacer (aprendo mais essa) e um planeta sem “nós” dando belas piruetas ao redor do sol. E tem gente que diz que eu ando apocalíptico. Ora, apocalíptico é o Haiti. Eu estou meio enferrujado, só isso.