03 março 2009

Inveteratividade


Aos 15 anos e meio, Samuel saiu-se com essa. Conversávamos na parada de ônibus e ele tentava explicar não sei o quê, que tinha puxado mais para a mãe enquanto a Veriana era herdeira "desse seu talento, essa sua... (procurou uma palavra e veio esta:) inveteratividade".

Tentei especificar: você está se referindo a essa coisa da palavra escrita? Não -respondeu-, as outras coisas também, a loucura toda.

Bem, seja lá o que for essa capacidade de ser inveterado em qualquer coisa, parece que a Veriana pegou de mim, e é a parte que dói, acho, e induz a gente a ficar acordado madrugada adentro, em alguma obsessão. Há, certamente, algum talento que escorre em meio às horas. Meu dom, minha cruz. Não sei se gosto de lembrar a canção: "ah, meu amigo, meu herói, ah como dói saber que a ti também corrói a dor da solidão".

Mais tarde falei com Samuel ao telefone para pedir que ele lembrasse a palavra. Ao ouvi-la novamente, achei muito engraçada e disse: bem, você ainda é muito novo para ser inveterado em qualquer coisa. Depois fiquei pensando. Sei que há um bocado de escolha nas identificações que a gente vai fazendo para defender a mãe, guardá-la dentro do peito, recusando algum pai que ameace a integridade e a delicadeza inefável daquela pureza que a gente não quer perder. Um dia, porém, a força oculta do pai também se revela.

Comigo aconteceu depois dos 30 anos, já andando sem pai nem mãe no mundo, quando um dia, cruzando a perna como ele cruzava, erguendo a sobrancelha como ele erguia, fazendo aquele gesto, sorrindo aquele sorriso, percebi meu pai em mim. No começo incomodou, depois me acostumei, hoje nem noto mais.

Inveteratividade. O velho Vieira era um inveterado, sem dúvida, seja lá no que fosse. E agora que o neto dele me deu esta palavra, será mais fácil me livrar de umas dores que vem me deixando torto e mal-dormido, deixar para trás algumas cargas que estavam pesando em meu ombro.

Posso até começar uma história nova, ou lembrar de alguma antiga.

7 comentários:

Luciano Martins-Costa disse...

Beleza de texto, seu Toinho. Faz umas semanas que fui visitar meus pais. Seu Joaquim tem 94, dona Cota completou 90. Sempre busquei uma palavra pra definir aquela busca da coisa certa, aquela obessão por enxergar a coisa boa no fundo dos infortúnios. Meu pai passou dez anos afastado da Marinha Mercante depois de 1965, por conta de um inquerito policial-militar inexistente, foi muitas vezes levado para interrogatorios. Nunca se queixou. Quando alguns brasileiros irreprocháveis começaram a ganhar indenizações milionárias por conta de uns cascudos ou nem isso, perguntei se ele queria ser incluído na lista dos perseguidos pelo regime militar. Ele ficou indignado. Disse: "E que valor teriam minhas escolhas?"
Agora sei. Meu pai tem a tal inveterabilidade.

Luciano Martins-Costa disse...

Ou seria inveteratividade? é isso.

BLOG DO CARIOCA disse...

Os filhos da gente fazem a gente viajar mesmo. Fernanda me surpreendeu em um dia nublado. Ao sair na sacada de casa ela se espriguiçou, olhou para o céu nublado de um dia de domingo e interrogou: _Pai por que o sol não veio?

Nós que somos pra lá de sensíveis com as coisas que envolvem os astros do planeja. Nossa, fiquei emocionado.

O Samuel é um garoto especial, tenho aprendido a admirá-lo, principalmente na Igreja. Com certeza, ele tem muita inveteratividade pela frente.

Anônimo disse...

O Samuel deu uma aula de inveratividade ...

Anônimo disse...

Arengo comigo, quando me vejo no meu pai. E é quase sempre. E ele, tadinho, não se suporta quando se olha no espelho em mim. E a gente vai se vendo e se (des) entendendo com a boa dose de "inveteratividade" necessária.

Thiago Martins disse...

Olá Toinho! Não sei se a inveteratividade é boa... Mas a história foi ótima! Escrevo mais para agradecer a aula-palestra de quinta-feira. Muito obrigado! Foi excelente! Gostaria de te perguntar algumas coisas religiosas. Vou te mandar um e-mail. Luz e paz! E novamente muito obrigado pelos bons ensinamentos! Thiago.

Janu Schwab disse...

É que essas coisas fazem jus ao sangue. E, melhor, a alma também. Ver-se noutros por aí. Ver os outros por aqui.É coisa de gente saudável.