27 novembro 2009

descaminhos

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O jovem me aborda no terminal rodoviário, entre a chuva e o ônibus, para me perguntar, inicialmente, como vai o PV. Respondo que não tenho intenção de me associar a nenhum partido, apenas vou ajudar Marina Silva no que for possível. Daí passamos a comentar todo tipo de insuficiências do Estado e da chamada sociedade civil diante dos problemas maiores, aqueles grandões, para os quais não há nem mesmo um sonho fugaz de solução.
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Há pouco li um artigo em que fala da obsolescência do Estado. Sim, é verdade, mas não é o único a sofrer desse mal. Há mesmo uma obsolescência do mundo, do pensamento, da civilização, da raça humana. Há uma máquina de non sense ligada e o dia é uma partida de ping-pong entre a ansiedade e a prostração. As pessoas nem sabem por que estão assim chateadas. Qualquer ideologia é tentativa de auto-engano, fuga apressada à depressão, prece balbuciada diante do abismo.
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O que me preocupa é essa estranha mania de me preocupar. Falei ao jovem, antes de entrar no ônibus: o povo se incomoda, se mobiliza e inventa coisas novas, que viram cultura e política. Assim as coisas mudam, Mas depois tudo se acomoda e sobrevém o cansaço. Entramos no refluxo, sem criatividade, insistindo nas mesmas soluções falsas: mais casas, mais polícia, mais petróleo, é assim que estamos agora. Talvez daqui a um tempo apareçam novos caminhos.
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A dificuldade com o Estado é que ele se instala na psique coletiva como uma espécie de Ego, imperativo e inamovível, mediando todas as linguagens ou, pelo menos, tentando estabelecer controle sobre elas. Como o mundo real é muito maior e mais complexo, ficamos sempre com essa sensação de insuficiência: nosso estadinho não dá conta, é areia demais pro seu caminhãozinho. Ficamos, assim, como os governos: caricatos e vulgares no meio de uma propaganda evidentemente enganosa. Fugimos e dissimulamos porque temos vergonha ou, o que é pior, não temos.
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Vi uma proposta de um pessoal em Brasília, chamada Terapia Comunitária. Nem sei bem do que se trata, mas já gostei. Acho que podemos ir recuperando antigas e desenvolvendo novas formas de convivência. É importante que sejam não-institucionais. E que não busquem qualquer objetivo, mas sejam, como se costuma dizer, um fim em si mesmas. Algo assim como as cantigas de roda que as crianças de antigamente costumavam fazer. Por fazer.

13 novembro 2009

Com o tempo...

Poeta levantava-se todos os dias disposto a desmontar a Máquina do Mundo. Lutava com ela enquanto havia luz, às vezes nem parava para comer -um simples descuido e seria engolido, o que, aliás, aconteceu muitas vezes. À noite costumavam descansar e preparar estratégias para a refrega que continuaria, incansável, no dia seguinte. Digo costumavam porque a Máquina do Mundo empenhava-se na disputa, sabia que poderia ser desmontada definitivamente e resistia. Mais: sem a luta de Poeta, não via sentido em existir, era uma máquina inútil e dispendiosa. Mas ele não sabia que sabia disso, apenas lutava e, nas raríssimas vezes que vencia, voltava para casa triunfante, convidava os amigos e tomava uma taça de vinho para comemorar.
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Com o tempo, foram cansando. Nos dias de luta, param para almoçar -e às vezes o fazem juntos, conversando sobre a vida. Terminam cedo, aos sábados.
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Poeta passa agora muitos dias em casa, cuidando das plantas e escrevendo um livro, um longo e minucioso inventário de estratégias para desmontar a Máquina do Mundo.
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Ela também já não se empenha tanto em manter-se funcionando. Tem dias que fica por aí, totalmente destrambelhada. O mundo, por isso, está cada dia mais cheio de falhas e desastres. Mas em alguns dias surpreendentes é invadido por enormes e súbitas ondas de poesia.

06 novembro 2009

Umidades

Chuva todo dia, na lua cheia que passou oculta em nuvens. A manga madura caindo, acabou a fome no mundo. Inverno pegando água, a capoeira crescendo, mato verde brilhando em dias úmidos e amenos. Da floresta vem uma cantiga de força. Quem escuta levanta a cabeça, assuntando, achando rumo, e sai para o tempo a lançar chamados. Avia, menino, que é hora. Vambora, menina, cuida. A rede é boa, a vida é mais.
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Vi as fraquezas criadas em estufas, sentadas em plástico, desenhando no vidro, pensando dinheiro, delimitando vazios. Pareciam fortes, as fraquezas, naquele lugar sem chão e sem céu. Pra não morrer, procurei a porta (nem janelas havia).
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A Terra é meu refúgio, minha restauração. Uma noite cheguei e desci para o açude, nu e distraído. Nas margens encontrei manchas escuras que se moviam devagar. Acendi a lanterna para espantar um bando de capivaras -umas fêmeas com filhotes, o macho gritando ameaçador na ponta da barragem. Outra noite tinha um cachorro magro, doente, sem força para latir -soltava um ganido apavorante e rouco- e ninguém sabe de onde vinha. No meio-dia estava dentro dágua, moribundo, só a cabeça de fora. Esperei que morresse e joguei seu corpo no capim distante, junto a umas árvores onde os urubus tomariam chegada. Vida e morte dão respeito ao mundo, pelas duas aprendo.
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Três palmos já subiu o açude des`que a chuva chegou. Continuar assim, vai sangrar na próxima lua cheia e ficar de um verde limpo refletindo as árvores. Vou viajar em minhas campanhas: uma hora subo os rios interiores pra rever os amigos na floresta, outra hora vou às cidades grandes saber de mudanças no planeta. Tenho este pedaço simples e rude para meus retornos, as voltas que um homem tem que dar ao redor de si mesmo.
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Eu não viria aqui se não houvesse Amazônia.
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03 novembro 2009

Claude Lévi-Strauss (28.11.1908 – 31.10.2009)

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FOLHA - O que o senhor pensa das idéias ecológicas, que se tornaram fortes em todo o mundo e ganharam particular importância em países como o Brasil?
LÉVI-STRAUSS - Sou a favor, e de uma maneira tão extrema que acaba se tornando puramente teórica. O que norteia o pensamento ecológico é que ele proclama a vontade de defender solidariamente a natureza e o homem. Defender a natureza para as necessidades e dentro dos interesses do homem. Estou convencido de que as coisas são profundamente contraditórias. Se tivesse que tomar posições ecológicas, diria que o que me interessa são as plantas e os animais - e danem-se os homens. É óbvio que se trata de uma posição indefensável. Por isso, guardo-a para mim.


FOLHA - O senhor sempre tomou o partido da ciência, mas, na releitura de Montaigne que faz em História de Lince, mostra também suas distâncias em relação a uma fé no conhecimento. O senhor se tornou mais cético em relação à ciência?
LÉVI-STRAUSS - A lição que tirei de Montaigne é que estamos condenados a viver e pensar simultaneamente em vários níveis e que esses níveis são incomensuráveis. Há saltos existenciais para passar de um a outro. O último nível é um ceticismo integral. Mas não se pode viver com ceticismo integral. Seria preciso se suicidar ou se refugiar nas montanhas. Somos obrigados a viver ao mesmo tempo em outros níveis em que esse ceticismo está moderado ou totalmente esquecido. Para fazer ciência, é preciso fazer como se o mundo exterior tivesse uma realidade e como se a razão humana fosse capaz de compreendê-lo. Mas é "como se".


(Trechos de entrevista publicada na Folha de S. Paulo em 3/10/1993)