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Dez e meia da noite, na parada de ônibus, esperando o Custódio Freire que, como o nome indica, custa a chegar. Aproveitando a nova iluminação da avenida, tiro da mochila "Um Inimigo do Povo", de Ibsen, que o companheiro Itaan Arruda me emprestou -e já me cobra a montagem da peça que ainda nem acabei de ler.
Saem da zona de penumbra entre a avenida e o Parque três adolescentes, aí pelos 14 ou 15 anos, magros, cabeludos e suados, deslizando sobre seus skates. Param no portão da escola tentando avistar o vigia. Não conseguem, e um deles vem pular o muro perto da parada de ônibus, levando nas mãos uma garrafa de plástico para encher com água. Os outros dois ficam sentados na calçada, logo atrás de mim, com aquelas conversas ininteligíveis e banais, tipo assim eu ia na casa dele mas não rolou e tu ficou de me ligar e amanhã só.
Olhei a mochila sobre o banco, calculei o tempo de colocar o braço na alça, mas não identifiquei qualquer traço de agressividade na voz dos garotos. Sou, atualmente, um homem arrombado: um ladrão entrou em meu escritório enquanto eu viajava e levou um laptop, ao mesmo tempo em que outro entrou na minha casa para levar meus bujões de gás. Quando cheguei estava só o estrago. A "questão de segurança" que, como todo militante velho sabe, tem precedência sobre todas as outras, passou a fazer parte do dia e da noite, dos relacionamentos, da estética, da vida. "A vigilância cuida do normal" virou cultura. Mas ainda acontece de serem apenas garotos cansados e suados de zoar no Parque com seus skates, pulando o muro de uma escola para buscar água.
Não sei se algum deles percebeu qualquer traço de tensão em meu silêncio debruçado sobre o livro, mas justamente o que parecia mais jovem lançou no ar um contato, antes de tomar o último lugar na fila que desapareceu novamente na zona de penumbra de onde tinha surgido: "amou daquela vez como se fosse a última", cantou, e afastou-se com uma pedalada.
Com displiscente perfeição, o jovem skatista noturno entoou o primeiro verso de "Construção", música que Chico Buarque compôs no início dos anos 70 do século passado, quando, provavelmente, o pai deste garoto cujo rosto não vi ainda não era nascido e seu avô andava nas errâncias da juventude -como eu, que tenho idade para sê-lo, também andava.
Surpreendentes são as paradas de ônibus, às vezes.
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6 comentários:
adolescentes magros, cabeludos e suados, que deslizam sobre seus skates, também devem ter bom coração (e gosto musical). Aposto como algum deles tava afim de perguntar: "pô, velho, que livro é esse?", mas a timidez não deixou. =)
Querido amigo Toinho...
Que bom sentir o Tempo Algum.
Talvez a gente se encontre em algum tempo, ainda.
Talvez sim o ônibus que chega seja o mesmo... que chega.
Gostei da apresentação do blog: limpo, suave, tênue...
Os passarinhos nos gravetos dão o agrestino tempo...
Quanto aos textos... Ora, uma beleza!
A gente arranja tempo donde não tem para lê-los devagar... mastigando levemente...
engolindo tempo...
Grande abraço, Filósofo!
Demorou, mas mudastes. Para melhor. Tijolo por tijolo num desenho logico. Boa sorte e sucesso. Um grande abraço NN
Adolescentes, haverei de compreendê-los sem perder a compostura. A minha, aqui de casa, foi ler Robson Crusoé. Está naquela fase de amar ou odiar, e odiou. "Mãe, esse cara é um chato. Vive naufragando em todo lugar. Fica procurando o que fazer no mar... Tenho enjôo de mar. Arg!". Fiquei sem argumento. E se ela resolve desconstruir minhas referências literárias? Ando cismada com essa meninazinha.
Sim. Is tipos da noite vão do veludo ao velcro com mais facilidade do que gostamos de imaginar.
Mas o inesperado das esquinas é uma das últimas cisas que a noite pode nos oferecer
Meninos de 15, 16 anos cantando Construção me lembra um pouco eu mesma ou meu filho adolescente que pergunta a todos como que para garantir certa cumplicidade: "Já assistiu o Cheiro do Ralo?".
É...concordo. Paradas de ônibus são surpreendentes, às vezes.
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