12 julho 2012

eternos retornos

Vito Letizia, o Gilberto


Revista "'Epoca", 10/07/2012
Paulo Moreira Leite

Conheci Vito Letizia em 1975, num corredor da Faculdade de Ciências Sociais da USP. Na época ele se chamava Gilberto, vivia clandestinamente no país. A faculdade funcionava em barracos improvisados, com paredes de cimento e telhado de amianto. Eram frios no inverno e insuportavelmente quentes no verão.
Não fosse pelos olhos esbugalhados, que lhe davam uma cerca semelhança com o ator ingles Marty Feldman, que fez grande sucesso na comédia de terror “Jovem Frankestein,” Gilberto parecia a ter nascido para entrar e sair de qualquer ambiente sem ser notado. Tinha o cabelo curto, o corpo magérrimo, a pisada leve. Eu mal sabia quem ele era mas sabia o que estava fazendo ali.

Morto no fim de semana, depois de uma longa luta contra um câncer, Gilberto foi um dos principais dirigentes da Organização Socialista Internacionalista, OSI, um pequeno partido trotskista que fez um trabalho importante na luta contra a ditadura, entre bancários, professores e servidores públicos, mas ficou conhecido pela criação da Liberdade e Luta, a Libelu estudantil.

Como o próprio Gilberto iria recordar anos depois de deixar a organização, a Libelu foi uma espécie de lenda política daquele anos. Trinta anos depois daquelas reuniões clandestinas, algumas dezenas de militantes que Gilberto orientava e ajudou a formar, que costumavam ouví-lo de modo atencioso e até reverente, como mestre admirado e também temido, pelo tom enérgico de suas intervenções, fariam parte do governo Luiz Inácio Lula da Silva, ocupando postos no ministério e na assessoria direta do presidente.

Na segunda metade da década de 70, a OSI chegou a reunir mais de 1 000 militantes em células estruturadas, que faziam reuniões semanais e debatiam documentos internos. A atividade mais importante dos militantes era discutir, em toda reunião, as notas de conjuntura que o próprio Gilberto redigia, sintetizando os debates de um pequeno grupo de dirigentes da organização.

A Libelu tinha uma fama anárquica mas a OSI era uma estrutura dirigida e centralizada, orgulhosa de fazer o possível para seguir os métodos do Partido Bolchevique fundado por Lenin. Os militantes faziam reuniões todas as semanas, defendiam a linha política de forma disciplinada e pagavam uma contribuição financeira proporcional aos rendimentos de cada um. Todos os anos ocorriam Congressos – mesmo na clandestinidade – onde militantes eleitos escolhiam a direção da organização.

Gilberto deixou de ser um militante profissional muitos anos atrás. Saiu da OSI com os mesmos passos discretos e movimentos quase invisíveis. Preparando-se para a nova vida, prestou concurso de escriturário da Caixa Econômica e foi aprovado. Contava que gostava do serviço. Pouco depois de começar a trabalhar numa mesa onde atendia mutuários que compravam casa própria “eu disse tchau” para a OSI, como me contou em setembro de 2011, sentado numa doceira Holandesa na Vila Buarque, em São Paulo, onde dividimos muitas xícaras de café e suco durante uma hora e meia, na única conversa prolongada desde que nos encontramos pela primeira vez, em 1975.

Vito Letizia mudaria de trabalho duas vezes. Tornou-se professor numa escola pública da Zona Leste, com a esperança de manter uma atividade junto ao sindicato de professores. Detestou a experiência. Com o bom conhecimento acumulado pela leitura de obras clássicas do marxismo, conseguiu ser considerado – e aprovado – para uma vaga de professor da cadeira Marx 2 na PUC de São Paulo.

Num passado um pouco mais distante, ainda em Porto Alegre, sua cidade natal, Vito Letizia já era o principal dirigente, ou “doutrinador”, como constaria de sua ficha policial, de um grupo chamado Fração Bolchevique Trotskista. Preso por “atividade subversiva,” ficou três anos na cadeia, sem julgamento. Passou um ano e oito meses numa solitária, sem luz. Conseguia ler romances policiais – à luz de velas. Quando sentou-se no banco dos réus, recebeu uma pena de apenas dois anos. Não recebeu indenização nem pedido de desculpas pelo tempo que lhe furtaram.

Formado em Ciências Naturais, cadeira que antecedeu a biologia de nossos dias, Vito Letizia sempre foi um homem de longas leituras. Era capaz de ler em cinco línguas. Seu gosto por mapas fez dele um estudioso aplicado de geografia. A professora Miroslava Lima, que tinha 19 anos quando encontrou Vito Letizia pela primeira vez, em Paris, conta que decidiu estudar Geografia por influencia dele. Também recorda que, para divertir-se, Vito Letizia era capaz de fazer desafios como lhe pedir para declamar de cabeça os rios da Russia.

Na PUC de São Paulo, Vito voltou a exercitar ao menos em parte os velhos hábitos políticos, montando um grupo de estudos que reunia alunos e professores interessados em discutir a obra de Karl Marx nas tardes de sábado. Quando parou de lecionar, retornou a Porto Alegre, onde tinha um apartamento.

Mesmo distante de todas aquelas pessoas que fizeram parte da OSI, Vito Letizia mostrava um genuíno orgulho na voz ao falar de algumas delas, como Antonio Palocci, que foi ministro da Fazenda do primeiro mandato do governo Lula e também teve um papel importante nos primeiros meses do governo Dilma.
“O Palocci tinha uma liderança popular, que lhe permitiu tornar-se prefeito de uma cidade importante como Ribeirão Preto.” Após uma pausa, ele acrescentou : “Palocci seria o sucessor do Lula e seria o presidente da República. Se não fosse em 2006, teria sido agora, em 2010.” Referindo-se à denuncia do caseiro Francenildo contra Palocci, Vito se dizia convencido de que fizeram uma “armação contra ele. ”

Aos 74 anos, longe do PT, com uma rápida e pouco comemorada passagem pelo PSOL, Letizia seguia sendo, acima de tudo, um sujeito disciplinado. Recluso, estudioso, parecia possuir uma couraça de alta resistência que protege as próprias convicções. A OSI e a Libelu eram conhecidas por sua inflexibilidade política. Orgulhavam-se de ficar longe daquilo que, na época, com toda simplicidade, chamavam de “pressões da burguesia.” Isso incluía, por exemplo, fazer campanha pelo voto nulo até o momento em que os trabalhadores formaram seu partido, o PT.

Nos anos iniciais, quando se produziu o DNA da organização, o papel de Vito Letizia era único. Não era o mais brilhante e talvez não fosse o mais rápido para perceber mudanças nas nuvens da política. Mas era mais experiente, mais estudado, aquele que tinha mais clareza em questões de princípio. Dizia que a adesão a organização não era um compromisso ideológico, a ideias e opiniões. Era um compromisso com uma classe social.

Letizia também era a ligação da organização com um centro trotskista de Paris, comandado por Pierre Lambert, veterano militante da IV Internacional ainda nos tempos da Segunda Guerra Mundial. A parte mais conhecida de sua militância, que durou pouco mais de uma década, começou e terminou em Paris, em torno da organização de Pierre Lambert. Letizia foi para a capital francesa logo depois de sair da prisão, em 1973.

Conversando naquela confeitaria da Maria Antonia, ele me disse que foi atraído pela presença de quadros que atuavam sob liderança de Lambert em função de sua boa formação teorica, como o historiador Pierre Broué, autor de uma alentada biografia de Leon Trotski, além de outros intelectuais menos conhecidas mas importante em seu meio, como Jean-Jaques Marie e Gerard Bloch.

No início dos anos 80, enfrentando um certo desgaste interno na organização brasileira, Vito Letizia retornou a Paris. Ali, também ocorriam mudanças e conflitos em torno da linha política. “Naquela época se falava que era preciso dar espaço aos jovens ” lembra, numa entonação de quem só podia sentir-se naturalmente atingido por essas colocações, embora ainda não tivesse chegado aos 50 anos. “Muitas pessoas só estavam preocupadas em fazer carreira na política francesa, de qualquer maneira.” Letizia admite que já estava desgostoso e desanimado quando voltou ao Brasil.

Deixou a OSI pouco depois. Não tentou promover um racha nem criou uma dissidência. Simplesmente foi embora, como a pessoa que abandona uma atividade que se tornou penosa. Dirigentes da organização contam que chegaram a procurá-lo em casa, duas vezes. Letizia não abriu a porta.

Muitos anos depois, quando perguntei por divergências políticas daquele tempo, descobri que a passagem dos anos fez surgir diferenças profundas entre o Vito Letizia dos congressos da OSI, onde sempre foi uma das presenças mais importantes, e aquele cidadão que tomava um copo de suco sentado à minha frente. Letizia segue um advogado da revolução e um crítico do capitalismo. Numa palestra para um grupo de 40 antigos militantes, dias antes, ele disse: “Não queremos apenas empregos, não queremos trabalho penoso. Queremos atividade vital como seres humanos, e isso o capitalismo não pode nos dar.”

Minha lembrança de Gilberto era daquele dirigente duro, e muito inflexível, que chegava a atemorizar o interlocutor quando demonstrava irritação. Parecia perder a paciência quando só queria enfatizar uma ideia. Era um homem de exibir certezas, até porque não se conhece dirigente capaz de organizar jovens combativos em nome de suas muitas dúvidas. Ultimamente ele se definia como 90% marxista e 10% taoista, pensamento que já estudava no tempo da militancia, e que é uma das formas mais libertárias da cultura oriental que se conhece. Seu principal conselho ao jovens é “estudar para parar de ter as mesmas idéias falsas de antes”.

Vito Letizia era capaz de reconhecer muitos méritos nos principais personagens da revolução socialista. Mas, sem arrogância na voz, sem aquele ar pedante de tantos antigos ex-militantes que se tornaram sabidos de repente, define-se como crítico de todos eles. Como é tão comum nas pessoas que tiveram seu papel na luta contra a ditadura, a crítica envolve a visão anterior de democracia.

Em Lenin, Letizia condenava o conceito de vanguarda operária, a teoria de que uma revolução deve ser produzida de fora para dentro, a partir de um partido revolucionário, organizado e estruturado. Sua opção, agora, é bem diferente. “Não vamos apontar os obstáculos, o movimento vai apontar. Não vamos nos preocupar em atrair o movimento para nosso lado. Vamos deixar que ele nos atraia.”

Ele também tornou-se um critico de Leon Trotski, referência de todas as organizações onde atuou. Para o Vito Letizia dos últimos anos, Trotski jamais teve uma compreensão real de que uma sociedade precisa funcionar de modo democrático. Referindo-se a momentos decisivos do confronto contra Stalin e a ditadura stalinista, recorda que Trotski poderia até ter razão no que dizia “mas não entendia que era necessário lutar pela democratização de toda sociedade e não apenas dentro do partido.” Ele também admite que Trotski estava errado no massacre de Kronstadt, episódio da revolução russa que representou a ruptura dos bolcheviques e os anarquistas. Lembrando uma conhecida expressão de Trotski, ele diz que em função de Kronstadt ele não deveria ter dito, no fim da vida, que a “IV Internacional era uma bandeira sem manchas. Tinha manchas sim.”
Perguntei pelo Brasil. Ele não se conformava com o destino da Libelu. “Não entendi por que dissolveram a Libelu. Era um movimento importante. Tinha expressão social. Até o Caetano Veloso falava dela,” argumenta, sorrindo, o que faz raras vezes. Quando é perguntado sobre o papel da OSI, o olhar reage com menos empolgação. Ele considera que a atuação da OSI estava condicionada pelos mesmos limites da atuação do trotskismo em geral.

A vida de Vito Letizia passou por novas mudanças a partir de abril de 2010, quando ele descobriu um câncer no pâncreas. Tratou-se em Porto Alegre e, após várias sessões de quimioterapia, veio a São Paulo para reencontrar amigos que não via há muito tempo. Em São Paulo sua presença estimulou um reencontro de veteranos libelus. Ele fez uma palestra para o lançamento de um site, Interludium, onde eles procuram manter-se em contato. O site é aberto para contribuições variadas mas, nos primeiros meses, a maioria dos textos eram de autoria do próprio Vito Letizia.

Durante a palestra, numa pequena sala da Apropuc (Associação de Professores da PUC), Vito Letizia teve direito a um silêncio admirado e respeitoso, como só acontecia nos tempos em que, dentro da OSI, seu prestigio se encontrava no ponto máximo.

Compreensivelmente, a militância política dos anos da ditadura costuma produzir emoções peculiares na maioria das pessoas. Elas tem uma relação de afeto e especialmente de gratidão em relação aos dirigentes que, pelo exemplo, pela orientação e muitas vezes só pela presença naquelas horas, foram capazesa de ajuda-las a fazer parte de uma história que hoje é motivo de orgulho.
Cristina, antiga militante da OSI que hoje mora numa fazenda no interior da Bahia, conseguiu assistir à palestra de Vito Letizia pelo site. Descobriu, emocionada, que ele mantinha o discurso pausado, de quem fala com calma e com clareza, criando silêncios demorados, com se tentasse facilitar o trabalho de quem pretendia acompanhar a evolução de seu raciocínio. Também ficou feliz de rever aqueles olhos saltados. “Putz, quando percebi estava chorando, lembrando o quanto já viajei naquelas pausas eloquentes do Vito, naquele olhar de tartaruga centenária e nas suas palavras universais, raizes do futuro/uro/uro…”, escreveu Cristina, num email envidado a uma amiga.

05 julho 2012

Caminante

Faz tempos procuro a chave que abre todas as portas. O que é trancado será remexido. A luz sobre tudo queima a matéria, imprime o selo solar.

Nas vareda tenho visto: coisa boa, coisa à toa, os bocados. Quando chegam ao cansaço do repetido, uns se amofinam resmungantes, outros se apartam.

Agora nesse ente, o mundo espera.

Passo
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