16 agosto 2010

Sede sem sede

Meia noite, meio dia, o tempo de ver a Terra. Com o alívio de duas chuvas, a grama verde desponta por baixo do tapete de folhas secas pintado de amarelo, aqui e acolá, pelas flores que caem dos ipês. Mas o tempo é quente e ainda há fumaça encobrindo o céu. O açude pela metade. Os cajueiros entre flor e fruto, não sei se indo ou voltando, os passarinhos não respondem. E o ipê velho, no alto da Terra, domina e amplia a paisagem com sua luz de ouro que só se mostra nas grandes secas -como esta, como aqueloutra. A cacimba é boa e dá água limpa.
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Seco está o coração desse povo que encontro na cidade, com medo do olhar dos outros, com medo de seu próprio olhar. Marina é a medida de um esforço pela sanidade, é a parte que escapa do auto-engano, indulgência, oportunismo, hipocrisia, cinismo, todas as moedas em circulação no mercado da política. Os outros candidatos são bonecos, os que fazem campanha para eles também. Todo mundo sabe disso, mas a maioria busca na vitória eleitoral uma compensação para a derrota moral.
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Peçam-me água. Não me peçam voto.

Que só quando cruza a Ipiranga

Cansaço. A esta cidade tão grande cheguei após alguns dissabores: um avião que não sai de Rio Branco por causa da fumaça das queimadas, um pneu furado e um posto de gasolina fechado à meia noite na estrada de Porto Velho, outro embarque perdido, um hotel de pulgas, um vôo até Cuiabá, comida de aeroporto, outro vôo até chegar a esse trânsito confortável e a essa sequência tão agradável de reuniões. Mas não estou reclamando, Marina. Eu disse que podias desarrumar a vida velha, então taca ficha.
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Queria ter tempo e dinheiro para ir ao teatro, dar um passeio no Ibirapuera, ver um filme, comprar o Livro Vermelho do Jung que vi numa livraria da Paulista. Talvez na próxima, quem sabe. A cidade vai estar aqui, vai levar ainda muito tempo pra se desfazer, imagino. Uma boa cidade, São Paulo, não pra morar, é claro, mas pra escapar por uns dias, coisa que aprendi nos idos setentas quando a barra pesava em Brasília. Agora a barra pesa no Acre, no seco e fumacento verão eleitoral.
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Imagino a Terra na secura, as plantas morrendo de sede, o açude só a poça, nem duvido que o velho ipê tenha florado e desflorado. E eu no mundo.
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Em tudo por tudo, fico contente quando pergunto no taxi, na banca de jornal, no restaurante da esquina, em toda parte, e as pessoas me dizem que vão votar na Marina -em minha pesquisa sem qualquer rigor científico ela vai muitíssimo bem, obrigado, e nem dou bola para ibopes.
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Cansa um pouco, porém. Preciso dormir, amanhã tem mais. E por esses dias volto para ajudar os conterrâneos a soprar fumaça.
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Em trânsito

Marina, assim você me desarruma a vida. Além dessas viagens madrugada adentro e do trânsito fascinante de Sampaulo, tenho o desgosto de verificar que ninguém toma conta do Acre na minha ausência e a coisa fica uma bagunça. Fumaça de cortar com o terçado, já dava pra ver -pra não ver, aliás- do avião. Acho que o pessoal ouviu dizer que o "novo código" vai dar anistia pra incendiário. Um montão de coisa pra fazer, tudo pra lá de atrasado, duas moedas de 5 centavos no bolso, dívidas e dúvidas multiplicadas, as plantas morrendo de sede, caçadores invadindo a Terra atrás das capivaras... ah, se eu fizer a lista você vai ficar com dó. Pra completar, perdi a chave de casa -e talvez fosse melhor nem ter entrado pra não ver esse acúmulo histórico de desarrumações agora agravado pela mala desfeita às pressas.

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Mas valeu a pena. Deu gosto te ver cada vez mais elegante e afiada, estrela brilhando no céu do Brasil, arrastão de esperança, superação permanente, professora do essencial, cuidando do que importa. Pela calma que conquistas a cada instante de tempestade, pelo brilho no olhar, pela busca da palavra, por alguns milhões de sonhos, pela real realidade, por tanto aprendizado, pela grandeza da alma, por tudo e mais alguma coisa, valeu e segue valendo entrar no movimento sem pré-ocupações ou cálculos de resultados. Ah, eu não perderia por nada no mundo.

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Além do mais, até mesmo um pai ausente tem presente que espera: o menino me deu um sapato novo e macio para bailar, a menina vai me dar trinta dias de serviço como assistente de cronista. Um luxo desmerecido, pois não. E com amor renovado se faz tudo no maior gosto, espanta-se o atraso.

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Marina, dia desses vou de novo -nem precisa chamar. Pego a estrada, sigo o impulso, confio na harmonia que há de nascer em teu ritmo. Quero mesmo é vida nova.

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A vida velha, nem ligue. Bote pra desarrumar.