31 dezembro 2009

Janeiro por inteiro

Marina Silva

EM BREVE entraremos em janeiro, mês que recebeu esse nome em homenagem a Janus, que na mitologia romana é o deus dos inícios. Representado por duas faces em oposição, olha também para o que é findo, para o passado. É o encarregado de abrir a porta para o novo, mas lembrando sempre que as portas têm simultaneamente dois lados: a entrada é ao mesmo tempo a saída.

Sob a metáfora de Janus entramos em 2010, um ano como poucas vezes se viu na política brasileira, tantos são os significados presentes, de passado e de futuro. Alguns dos protagonistas desse ano incomum tentam o impossível. No cenário meticulosamente engendrado pelas duas principais candidaturas oficiosas, de situação e de oposição, Janus está subtraído de uma de suas caras, condenado a ter recortada de sua substância divina a metade da saída, do novo.

A intenção parece ser apenas medir os dois passados, mesmo em prejuízo do futuro que nos une.

Quer-se passar pela porta sem abri-la. Assim, o Janus mutilado da política brasileira fica incompleto para exercer sua função de integrar num mesmo sistema o status quo e a mudança, o ido e o porvir. Em lugar da refinada reflexão mitológica sobre o momento de passagem, entra a soberba imposição de uma queda de braço entre autoavaliações hiperbólicas, a competição entre quem fez mais e melhor aos próprios olhos, como se essa satisfação narcísica fosse um fim em si mesma, acima de tudo, inclusive do próprio país.

A isso se reduziu a política? Perdida sua capacidade de antecipar o futuro, é apenas uma contabilidade forçosamente distorcida entre projetos publicitários de poder, onde o enaltecer-se às vezes se sobrepõe ao reconhecimento do continuum que nos trouxe até aqui e das alternativas para seguir adiante.

O Brasil não pode aceitar esse jogo reducionista e vaidoso, preocupado apenas em medir o passado, sem instrumentos que permitam projetá-lo para o futuro e fazer escolhas. Jogo no qual há que se adotar um lado ou outro, de forma maniqueísta, como se fossem depositários excludentes de todas as virtudes. Saindo da mitologia romana para o ensinamento bíblico do livro de "Gênesis", de tanto olhar para trás podemos nos condenar a virar estátua de sal, como no triste episódio da mulher de Ló.

É preocupante a tentativa de subtrair dos cidadãos a autonomia para fazer suas escolhas, porque o que lhes está sendo apresentado não é a informação completa e necessária para assumir a plena responsabilidade pela decisão tomada. O que podemos desejar para 2010 é, no mínimo, que Deus nos ajude a ultrapassar o portal do futuro com nossos próprios pés.

18 dezembro 2009

No clima

Este corpo não foi a Copenhague, esta mente ainda não voltou de lá. Passei os últimos dias procurando notícias. Marina ganhou todas. Lula, que antecipou sua chegada à reunião antes que a desinformada e arrogante Dilma botasse tudo a perder, acabou assumindo propostas que antes recusava na tentativa de evitar o naufrágio do navio em que viaja com os "líderes" do mundo. Foi engraçado ver, hoje pela manhã, o artigo do Zé Dirceu criticando a proposta de Marina (da contribuição brasileira ao fundo mundial do clima) no exato momento em que Lula discursava na Conferência desse aceitando o "sacrifício" e recitava o mea culpa: isso acontece porque não cuidamos antes. Digo que foi engraçado mas, francamente, nem dá pra rir.
Estive em Brasília em outubro e fiquei surpreso ao notar que Marina, embora falasse da importância da Conferência de Copenhague, não parecia estar ansiosa com os resultados. Perguntei a respeito e ela deu a entender que o resultado real era a mobilização e o esclarecimento da população e que isso já estava ocorrendo, independente das posições oficiais dos governos. Hoje entendi isso com mais clareza ao ler o artigo de Saleemul Huq, que publico agora, no momento em que Obama, Lula e outros "líderes" iniciam mais uma reunião de emergência para tentar chegar, nos últimos momentos da Conferência, a um acordo que não salve o mundo mas ao menos as aparências.

O dia que tudo mudou em Copenhague
Por Saleemul Huq*
Copenhague, 18 de dezembro (Terramérica).- Trabalhei em temas de mudança climática por muitos anos, primeiro como pesquisador em minha Bangladesh natal e depois no Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, e como membro do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Mudança Climática. Vi com meus próprios olhos as ameaças que representam a mudança climática nas regiões secas da África, nas montanhas do Himalaia e nos vastos deltas baixos da Ásia. Testemunhei anos de falta de ação nas cúpulas da Organização das Nações Unidas, que não deram a resposta necessária porque os negociadores escolheram proteger estreitos interesses nacionais e econômicos em lugar de assumir o desafio de proteger as gerações futuras.

Discuti com os que negam a mudança climática e têm fortes vínculos com indústrias poluentes, e que nunca estiveram nas aldeias e comunidades vulneráveis, onde a mudança climática já mostra seus impactos. Se o fizessem, notariam o dano que sua ideologia causa nas pessoas que menos contribuíram com esta ameaça mundial. E agora, em dezembro de 2009, em Copenhague, creio que chegamos a um ponto de inflexão. Copenhague será lembrada nos próximos anos. Não pelo que ocorrer hoje, quando os líderes mundiais encerrarem a 15ª Conferência das Partes da Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP-15), mas pelo que ocorreu no sábado passado.

Naquele dia, gente dos mais diversos estilos de vida de todo o mundo assumiu a iniciativa que deveria ser ostentada pelos que se dizem nossos líderes. Além das palavras que estes presidentes e primeiros-ministros decidirem incluir em um “protocolo” ou “acordo”, é o povo do mundo que tem de escrever no muro. Os líderes que decidirem ler essas palavras nos farão avançar. Aqueles que as ignorarem serão arrastados pela maré da história. O dia 12 deste mês assinala o momento em que grande parte do mundo se levantou para executar uma mudança verdadeiramente global. Haverá retrocessos (como um acordo medíocre esta semana), mas a maré já se movimentou. E não pode voltar atrás.

Mais além do que conseguirmos em Copenhague – e sou otimista, apesar das manobras políticas – estamos em um caminho novo e inexorável. Os líderes que compreenderem isso podem proceder dos lugares mais inesperados. Vejamos, por exemplo, o presidente Mohammad Nasheed, da diminuta Maldivas.

Em poucos meses voltarei a Bangladesh para combater a mudança climática real, para opor-me às más (ou inadequadas) políticas que a abordam. Minha ambição para os próximos anos é ajudar a população de um dos países mais pobres e vulneráveis – e, entretanto, mais resiliente e inovadora – para que deixe de ser o emblema mundial de vulnerabilidade e passe a ser reconhecido como, talvez, o que melhor se adapta.

Volto à minha pátria para criar um novo Centro Internacional para a Mudança Climática e o Desenvolvimento, no qual aspiramos aprofundar a capacidade de governos, organizações da sociedade civil, pesquisadores, acadêmicos, jornalistas e muitos outros atores das nações em desenvolvimento para responder aos desafios que a mudança climática apresenta. O novo centro oferecerá capacitação sobre como sobreviver (e inclusive prosperar) em um mundo aquecido. Focará principalmente na adaptação à mudança climática nas nações menos adiantadas, mas não se deterá nisso.

Na verdade, planejamos criar instrumentos para que os países industrializados possam enfrentar impactos climáticos adversos. Paradoxalmente, o mundo rico que causou este problema não planejou em detalhe com adaptar-se a ele. Volto à frente de combate à mudança climática, onde a luta real já está em marcha. Vou sabendo que milhões de pessoas de todo o mundo compartilham minhas esperanças e meu otimismo quanto a que a humanidade pode unir-se para enfrentar o desafio que pode determinar nossa vida sobre a Terra.

* Saleemul Huq é membro do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento e autor principal dos informes do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre Mudança Climática (IPCC), ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2007.

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.
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