13 agosto 2009

Toque de recolher

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Limpar a casa, abrir as janelas, regar as plantas que o verão acreano está forte e seco com seus dias quentes de sol soberano e suas noites frias de estrelas cintilantes. Molhar o dedo na água do açude e erguer ao vento, pra sentir de que lado sopra. Ler o livro antigo. Gengibre limpa, cidreira acalma, tabaco tira reima.
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Ver, ouvir e calar. Desvencilhar-se do emaranhado rasteiro, bater os sapatos ao pé da escada, olhar para cima. Como as onças, reunir todos os músculos ao redor de um ponto no solo antes de saltar. Minguar com a minguante para depois renovar tudo num momento.
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Num momento, tudo.

08 agosto 2009

Por falar em tempestades

O Subcomitê Zero, versão atualizada e zapatista da extinta Comissão de Baixo Nível, resolveu convidar o cantor-compositor-escritor-conquistador Chico Buarque de Holanda para ser candidato a vice-presidente na chapa de Marina Silva. Bom Conselho é uma opção de jingle para este momento da campanha.
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03 agosto 2009

Complexo de Lear

MARINA SILVA

DURANTE CURSO de especialização na Universidade de Brasília, estudei a obra "Rei Lear", de Shakespeare. Talvez a tragédia possa nos ajudar a entender um pouco a política brasileira.

Ao sentir-se velho, Lear decide abdicar da sua condição de rei, do enfadonho encargo de governar. Chama as filhas -Goneril, Regana e Cordélia- para dividir seus bens e poder, anunciando que seria mais agraciada aquela que lhe fizesse a maior declaração de amor. E impõe outra condição: enquanto vivesse, o rei deveria ter assegurado respeito, prestígio, cuidado e, quem sabe, até mesmo o amor de suas filhas e súditos. Quer deixar de ser rei sem perder a majestade.

Cordélia, a mais jovem, com quem o rei mais se identificava, e que muito o amava, não soube dizer o que sentia. As outras não sentiam amor pelo pai, mas eram hábeis na verve.

O que torna sua jornada trágica e dolorosa é que Lear se recusa a retornar ao que um dia foi, um simples homem, rei de si mesmo. Não quer morrer, tornar-se passado. Quer ser sucessivo como é a vida, reviver a fase do prazer de poder. Quer ter séquito e até mesmo um bobo para ninar seu desamparo.

Mas ninguém pode impunemente regredir sem ser atormentado pelo fantasma da repetição. No seu obsessivo desejo de ser amado, Lear agarra-se às palavras de Goneril e Regana. E rejeita amargamente a rebeldia de Cordélia, que só sabia sentir e não se sujeita a ter que fazer uma declaração de amor ao pai, obrigando-o a perceber esse amor no único lugar onde deveria estar: no resultado afetivo de suas relações pessoais.

Não por acaso desmorona o mundo de Lear. O que antes era tão bem definido, passa a ser ambivalente. Certeza e dúvida, coragem e medo, segurança e desamparo. A loucura de não mais saber quem é.

O alto preço por ter almejado e transformado em "ato" o desejo de retornar ao lugar onde um dia esteve e querer assumir a forma do que um dia foi. Ele só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é. E mesmo estes, incluindo Cordélia, não têm mais como aceitar seu governo senil. Até porque foi ele próprio quem decidiu abdicar de ser quem era para tornar-se quem não mais podia ser.

Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo: "Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio".
Genial Shakespeare, trágico rei, frágil humanidade de sempre, que não quer passar. Que infringe a ordem dos acontecimentos, sem o árduo trabalho de elaborá-los. Que desiste de ressignificar-se, e quer tão somente repetir o prazer da sensação vivida nas ilusões de majestade