25 maio 2009

Bazar de espelhos

Posso dizer que tenho uma comunidade quando a convivência entre os seres que dela participam -mesmo não estando isolados de outros em outras possíveis comunidades, mas em uma autonomia tênue e relativa- cria uma variação de um código de linguagem, um ego-self coletivo com o qual se identificam e um espaço-tempo no qual se sentem "do lado de dentro".

Não se fica, assim, liberto ou distante da "realidade" dos padrões institucionais dominantes e dominados pelo grande mercado de identificações, da multidão, das mídias, do consumo, das máquinas econômicas e políticas, mas pode-se viver um pouco de vida própria: noções de tempo, afetos, preferências estéticas, ética, em tudo se pode criar moldes alternativos e mais íntimos, menos tensionados, menos conflitivos. Na comunidade, o viver pode ser tranquilo.

Pode, mas nem sempre é. Os riscos são permanentes e não vem apenas de fora, pelas tentativas de enquadramento do "sistema", mas pela ansiedade que nasce dentro, a partir do desejo de adequação de indivíduos e subgrupos aos padrões de excelência e vantagem, às oportunidades que vislumbram tanto na feirinha quanto no supermercado das identidades: afinal, todos querem ser.

O que vale para grupos, vale para cada um. Os espaço-tempos do mundo lá fora, da comunidade ou dos subgrupos existe no ser de cada ser e acontece na relação de uns e todos. Resumindo: corrigir os outros é me corrigir nos outros.

19 maio 2009

Descredo

A representação é essencial na arte, coisa muito boa de se ver. Conheço seu truque, que tenho usado, como todo mundo usa, há um tempo muito maior que a memória. Figuras, inclusive as de linguagem, são para o deleite da mão que as cria e do olho que as aprecia, mas sua beleza ou inteligência desaparece quando são chamadas de realidade ou verdade. São figuras, justamente figuras, nisso reside toda sua realidade e toda sua verdade.

Ando cansado de argumentos. Sou dono de uma boa porção da retórica que existe no mundo, conheço sua força e fraqueza, seu movimento de torção, o ponto de apoio de suas alavancas, suas substituições: causa por efeito, todo por parte, conclusão por hipótese, tantas por quantas. Também no bonsai se torce a planta –e a poda das raízes é o mais importante- até que o ser se dobre à mente.

Observo a sedução dos planos: a projeção que se estica até onde o cálculo alcança e, mais além, ousada, faz uma pirueta no ar. Parece inevitável que mundo e o tempo a sigam. Apenas parece. A estratégia é boa no jogo, mas às vezes perde para a sorte ou para quem não obedeça às regras.

A objetividade é uma coleção de inutilidades, mas a subjetividade também virou coisa que se compra na esquina. Nisso a indústria humana foi eficiente: replicar modelos mentais em quantidades infinitas e dimensões variadas até que ocupassem todo o espaço e o tempo. Razões perecíveis, emoções descartáveis. Mais lixo.

Sinto-me velho demais para ser idealista e ainda muito jovem para ser pragmático. Ingenuidade e cinismo brincam de mocinho e bandido, na rua, em frente à minha casa. Termina sempre em briga e choro, antes que as mães chamem para tomar banho e levar uns bons esfregões no pescoço e atrás das orelhas.

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Cresce em mim a força silenciosa do invisível indizível.

11 maio 2009

Caminho da Terra









A estrada da Terra vai dar no céu, se eu souber andar, se eu parar e respirar, se eu cantar. A estrada da Terra vai dar no céu, se eu olhar onde piso, onde pisei, onde vou pisar. Se eu olhar para todos os lados. Se eu olhar para cima. Porque o caminho não existe sem mim. Na verdade, o caminho existe em mim. Por ele, posso chegar a qualquer inferno da dor e da loucura, posso cair no abismo do nada, posso me perder no escuro, posso dar com a cara no muro. A cada passo, em cada rumo, uma vontade me move. Ao vento lanço meu brado: existo! Sou esta gota de suor no peito, a têmpora latejante, o ar nas narinas. Sou este ombro que aguenta carga e para o qual a carga é leve. Sou o pensamento, a prece, o cansaço, o alívio da chegada. Sou o destino, onde quero chegar. E se eu quiser chegar ao céu, então a estrada da Terra vai dar no céu.



06 maio 2009

TEMPUS FUGIT

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Ainda não se decidiu, o vento, se é de chuva ou de friagem. Mas o dia cinza e friorento introduz possibilidades de um verão acreano, daqueles que vareiam e contrareiam gramáticas e meteorologias. E como a filosofia e a poesia raramente sobrevivem em temperaturas acima de 30 graus centígrados, aumentam as chances de oscilação bipolar, embora assim graduada, no ânimo dos povos da floresta. Ontem era dia de ocupar a praça com protestos, hoje para tomar tacacá.

Enquanto isso, a vida vai passando. Oitenta anos, noventa, um dia as pessoas vão embora. Quem fica, conversa um pouco sobre o assunto -esse, a morte- que, por incômodo, não se demora. Entretanto, dizem que a enchente de 53 só não foi maior que a de 11, lembrada pelos antigos como o dilúvio. Isso significa que há diferenças entre viver agora e em outro tempo, o que certamente implica em algumas responsabilidades. O esforço para pensá-las é que parece ser muito grande -pela poesia ou pelo tédio- no frio como no calor.

Imagine se tivéssemos tempo.
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