30 março 2009

Porque ler o mesmo livro tantas vezes

.......- Tenho mais alguma coisa para lhes dizer, que é muito mais séria -muito pior no que se refere aos Nativos, se não a vocês. Este planeta tem um inimigo. Não tinham percebido isso?
......Silêncio. Mais uma vez a palavra "inimigo" parecia passar por eles, diluindo-se na atmosfera da sala. Simplesmente era como se não soubessem onde encaixá-la. É uma sensação estranha, quando durante toda a vida se pensou em termos de confronto e superioridade, tratados e manobras políticas necessários para combater os vilões das galáxias, encontrar-se inesperadamente entre pessoas que jamais pensaram em termos de oposição, muito menos de maldade.
.......Tentei um pouco de humor:
......- Pelos menos devem saber que existem inimigo! Eles existem, sabem? Na verdade estão sempre ativos. Nesta nossa galáxia existem forças do mal em funcionamento, e são muito fortes...
.......Pela primeira vez entreolharam-se, com o movimento instintivo que é sempre sinal de fraqueza. Procuravam descobrir nos olhos dos companheioros o significado dessa coisa, "inimigo". Contudo, em seus primeiros relatórios, no início das nossas experiências em Rohanda, diziam que haviam rumores sobre espiões, e naturalmente espiões implicavam a idéia de inimigos, até para o mais inocente.
......Percebi que eram uma espécie que, por algum motivo imprevisto, não podia pensar em termos de inimigos. Eu mal podia acreditar. Jamais vira nada parecido em outros planetas.
(em Shikasta, de Doris Lessing)

15 março 2009

10 março 2009

Sem acordo

Confesso que fico irritado com essa pressa dos jornais e jornalistas acreanos em aderir ao tal acordo ortográfico. Agora, onde se pode colocar "do Acre" eles substituem por "acriano", para demonstrar sua alegre rendição às novas regras. Fiquei ainda mais chateado quando vi releases da Agência de Notícias do governo estadual usando tal aberrante palavra. E agora, pra completar, um supermercado que tinha por slogan "orgulho de ser acreano" já declara, em suas propagandas, orgulho de escrever como os colonizadores e colonizados d'além mar.

Todo mundo sabe que isso é golpe da indústria do livro, qualquer um é capaz de imaginar o tamanho da bolada que o governo vai gastar, nos próximos anos, republicando todo o material didático, do primeiro ano à universidade. Uma mina de ouro. Necessidade mesmo, não existe. Ninguém deixa de entender um romance do Saramago por alguma palavra grafada sem hífen, subumano ou coisa semelhante, assim como não é preciso traduzir Guimarães Rosa para que os portugueses o entendam e apreciem.

Eu havia decidido ignorar essa reforma idiota. Como escritor, não necessito dela: uso meu idioma, aquele que aprendi de meu povo e que vou aperfeiçoando e adaptando às minhas preferências. É um lindo idioma, com origens diversas: no português antigo, no nheengatu, nas influências de diversas imigrações, nos sucessivos colonialismos culturais, na criativa reação popular, na antropofagia dos modernos, na contribuição regional de panos e aruaks... o que faltar, vou inventando.

As regras são simples. Sei que aqui cabe uma vírgula mas por estilo não coloco. Onde não cabe, entretanto, coloco, por prudência e para facilitar o entendimento. Devo ter usado o trema duas ou três vezes na minha vida. Logo percebi sua inutilidade e não preciso que me venham agora, tantas décadas depois, dizer que posso escrever tranquilo sem colocar aqueles dois pontinhos tão apreciados por alemães e noruegueses.

A liberdade que tenho corresponde a uma grande tolerância para com os erros alheios. Se deixo de seguir as regras que conheço mas não aceito, não fico espezinhando aqueles que não seguem por ignorância. Não sou revisor do mundo e, embora pense que os comunicadores devam escrever com um razoável grau de correção em respeito ao senso comum, defendo a idéia, já expressa por um famoso escritor antes que eu nascesse, de que a crase não foi feita para humilhar ninguém. Aliás, o erro pode estar -e frequentemente está- a serviço da evolução da língua e do alargamento de sua abrangência. Tendo a achar tudo interessante mas, francamente, uma reforma que faz com que tantos escribas passem a se autodenominar "acrianos" é uma lástima.

Nasci no Acre, vou morrer acreano.

03 março 2009

Inveteratividade


Aos 15 anos e meio, Samuel saiu-se com essa. Conversávamos na parada de ônibus e ele tentava explicar não sei o quê, que tinha puxado mais para a mãe enquanto a Veriana era herdeira "desse seu talento, essa sua... (procurou uma palavra e veio esta:) inveteratividade".

Tentei especificar: você está se referindo a essa coisa da palavra escrita? Não -respondeu-, as outras coisas também, a loucura toda.

Bem, seja lá o que for essa capacidade de ser inveterado em qualquer coisa, parece que a Veriana pegou de mim, e é a parte que dói, acho, e induz a gente a ficar acordado madrugada adentro, em alguma obsessão. Há, certamente, algum talento que escorre em meio às horas. Meu dom, minha cruz. Não sei se gosto de lembrar a canção: "ah, meu amigo, meu herói, ah como dói saber que a ti também corrói a dor da solidão".

Mais tarde falei com Samuel ao telefone para pedir que ele lembrasse a palavra. Ao ouvi-la novamente, achei muito engraçada e disse: bem, você ainda é muito novo para ser inveterado em qualquer coisa. Depois fiquei pensando. Sei que há um bocado de escolha nas identificações que a gente vai fazendo para defender a mãe, guardá-la dentro do peito, recusando algum pai que ameace a integridade e a delicadeza inefável daquela pureza que a gente não quer perder. Um dia, porém, a força oculta do pai também se revela.

Comigo aconteceu depois dos 30 anos, já andando sem pai nem mãe no mundo, quando um dia, cruzando a perna como ele cruzava, erguendo a sobrancelha como ele erguia, fazendo aquele gesto, sorrindo aquele sorriso, percebi meu pai em mim. No começo incomodou, depois me acostumei, hoje nem noto mais.

Inveteratividade. O velho Vieira era um inveterado, sem dúvida, seja lá no que fosse. E agora que o neto dele me deu esta palavra, será mais fácil me livrar de umas dores que vem me deixando torto e mal-dormido, deixar para trás algumas cargas que estavam pesando em meu ombro.

Posso até começar uma história nova, ou lembrar de alguma antiga.