20 fevereiro 2009

Farinha com mel

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Primeiro é preciso entender a dinâmica da mudança, suas "leis" internas, seus fluxos, contradições e tempos, sua concepção, nascimento, maturação, estagnação, rupturas, avanços, retrocessos, lucidez, loucura. Conhecer a mudança, como ela é, por fora e por dentro.

Depois é preciso entender o estar-na-mudança, de como a percepção vira pensamento, que vira percepção, como ambos resultam em ação, que vira mais percepção e pensamento.

E ainda é preciso estar integrado e separado, ao mesmo tempo. Se eu estiver totalmente integrado, vou simplesmente fazer parte, estar em conformidade, seguir a corrente, a manada. Se estiver totalmente separado, não posso influenciar nem dar rumo. Um tanto de uma coisa, um tanto de outra... é como comer farinha com mel: mais farinha e fica seco, mais mel e fica melado, e por aí vamos.

19 fevereiro 2009

Construção

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Dez e meia da noite, na parada de ônibus, esperando o Custódio Freire que, como o nome indica, custa a chegar. Aproveitando a nova iluminação da avenida, tiro da mochila "Um Inimigo do Povo", de Ibsen, que o companheiro Itaan Arruda me emprestou -e já me cobra a montagem da peça que ainda nem acabei de ler.

Saem da zona de penumbra entre a avenida e o Parque três adolescentes, aí pelos 14 ou 15 anos, magros, cabeludos e suados, deslizando sobre seus skates. Param no portão da escola tentando avistar o vigia. Não conseguem, e um deles vem pular o muro perto da parada de ônibus, levando nas mãos uma garrafa de plástico para encher com água. Os outros dois ficam sentados na calçada, logo atrás de mim, com aquelas conversas ininteligíveis e banais, tipo assim eu ia na casa dele mas não rolou e tu ficou de me ligar e amanhã só.

Olhei a mochila sobre o banco, calculei o tempo de colocar o braço na alça, mas não identifiquei qualquer traço de agressividade na voz dos garotos. Sou, atualmente, um homem arrombado: um ladrão entrou em meu escritório enquanto eu viajava e levou um laptop, ao mesmo tempo em que outro entrou na minha casa para levar meus bujões de gás. Quando cheguei estava só o estrago. A "questão de segurança" que, como todo militante velho sabe, tem precedência sobre todas as outras, passou a fazer parte do dia e da noite, dos relacionamentos, da estética, da vida. "A vigilância cuida do normal" virou cultura. Mas ainda acontece de serem apenas garotos cansados e suados de zoar no Parque com seus skates, pulando o muro de uma escola para buscar água.

Não sei se algum deles percebeu qualquer traço de tensão em meu silêncio debruçado sobre o livro, mas justamente o que parecia mais jovem lançou no ar um contato, antes de tomar o último lugar na fila que desapareceu novamente na zona de penumbra de onde tinha surgido: "amou daquela vez como se fosse a última", cantou, e afastou-se com uma pedalada.

Com displiscente perfeição, o jovem skatista noturno entoou o primeiro verso de "Construção", música que Chico Buarque compôs no início dos anos 70 do século passado, quando, provavelmente, o pai deste garoto cujo rosto não vi ainda não era nascido e seu avô andava nas errâncias da juventude -como eu, que tenho idade para sê-lo, também andava.

Surpreendentes são as paradas de ônibus, às vezes.
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16 fevereiro 2009

Mudar

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Entretanto, como largar as penas? As dores longamente cultivadas até que ficassem firmes, espetadas na carne, as cores vivas com todos os tons de todas as emoções, como deixar ir no vento e permanecer, trêmulo, com a pele arrepiada de frio e esperança?

Nessas horas o pássaro não canta. Mas o canto é o que tenho. Vou começar, portanto, ainda que quase inaudível, numa tarde nublada do inverno amazônico. E o tempo dará o tom e a melodia, que o tempo muda e demuda tudo.

E não se trata de uma decisão pessoal. Há um vento, um chamado, uma vontade cuja origem é difícil de identificar, mas que me inspira confiança para navegar nesta era da incerteza. Mas a responsabilidade é minha e ainda que eu quisesse ser impessoal, não conseguiria. O que quer que seja, não é lá fora.

Assim, numa tradução totalmente livre de Heráclito: "se escutares, não a mim mas ao logos que fala em mim, concordareis que Tudo é Um".

Então, que venha o Tempo.